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História nº 13: Shiokara & Pão de queijo

A nikkei Linda chegou ao Japão em 2007. Era inverno e o que ela guarda na lembrança foi a calorosa recepção de boas-vindas dos seus familiares.

Filha única, ela perdera o pai quando ainda era criança e, anos depois, quando Linda estava com dezoito anos, a amada mãezinha também se fora, deixando-a sozinha no mundo. Foi então que um tio, que era decasségui no Japão, chamou-a para ir morar lá.

Esse tio vivia com a família no Japão fazia 13 anos. Recentemente abrira uma loja de produtos brasileiros com o nome de “Mercadinho do Paulo”, onde trabalhavam também a sua esposa e dois dos seus filhos. A outra filha ainda era estudante. Linda também trabalhava na loja e seus dias eram bastante atarefados, mas ela estava gostando muito.

Chegou a primavera e Linda viu as flores de cerejeiras pela primeira vez na vida. Nesse mesmo dia, quando estava andando debaixo das cerejeiras em flor, inesperadamente, encontrou Shinji Hirata, que ela havia conhecido no Brasil quando ambos eram crianças. Essa também foi uma lembrança maravilhosa para guardar no coração.

O mercadinho do tio era também um ponto de encontro dos brasileiros. As crianças iam lá para ler gibis e alugar vídeos de anime. Os homens ficavam envolvidos com notícias sobre os times de futebol do Brasil e, por vezes, chegavam a ter discussões acaloradas. As mulheres, por seu lado, conversavam sobre coisas do dia a dia, as novelas e a vida dos famosos do Brasil. Nos fins de semana, o fundo da loja virava um salão de beleza e estava sempre cheio. Como a grande maioria das decasséguis não têm tempo para estudar japonês e, consequentemente, mal falam a língua, ir ao salão japonês seria a última coisa que fariam. As mais jovens, principalmente, achavam que o estilo brasileiro de corte e de fazer as unhas é que combinava melhor com elas e iam com frequência.

Mas o que fazia mesmo sucesso naquele mercadinho era a prateleira de comida feita na hora que, por sugestão de Linda, havia sido inaugurada. Tudo começou depois que uma cliente japonesa comprou um preparado para pão de queijo e experimentou fazer em casa, mas não teve o resultado esperado.

Isto deixou Linda um pouco apreensiva, então ela resolveu fazer pães de queijo e pôs à venda, quentinhos, saídos do forno. O sucesso foi tamanho que ao meio-dia tinha acabado tudo! Depois do pão de queijo, apareceram outros tipos como o quibe frito, a torta de palmito e até doces como o brigadeiro e a cocada. Tiveram aceitação imediata e saíam muito bem. Além disso, tudo era preparado com os produtos que vendiam. O tio de Linda estava felicíssimo e dizia: “A Linda tem muito mais jeito que eu para os negócios!”.

O pão de queijo passou a sair três vezes ao dia e foi quando um jovem começou a aparecer quase que diariamente. No começo, ele apontava para o pão e indicava o número “1” com gesto, mas depois que descobriu que Linda falava um pouco de japonês, passou a fazer o pedido em japonês mesmo. Parecia estar interessado no Brasil, pois perguntava sobre vários assuntos.

O nome do jovem era Naotaro Kurosaki e trazia sempre uma bandana à cabeça. E desde a primeira vez, Linda simpatizou bastante com ele.

Naotaro também, toda vez que via Linda pensava: “Que sorriso bonito e gosto dos seus cabelos pretos”. E quando ele, casualmente, tocou no nome dela em casa, seus pais se entreolharam surpresos e foram logo fazer uma visitinha à loja onde Linda trabalhava.

O pai de Naotaro tinha uma loja especializada em frutos do mar. Tão logo terminou o ensino médio, o filho único Naotaro iniciou o aprendizado para um dia poder suceder os negócios da família. E como estava com 26 anos, seus pais começaram a pensar em arranjar-lhe uma noiva. Ele mesmo ainda não pensava seriamente no assunto, mas quando falou um pouco sobre Linda, seus pais ficaram muito felizes.

Passado algum tempo, Naotaro e Linda começaram a namorar, tudo muito naturalmente. Um dia, Linda foi pela primeira vez à loja de frutos do mar e provou o shiokara, uma conserva de peixe de sabor muito forte. Ela estava experimentando pela primeira vez e achou-o delicioso! Nessa mesma hora, Naotaro pensou, num repente: “É a pessoa com quem posso passar junto a vida inteira”.

O casamento aconteceu em 2010, bem na época das cerejeiras em flor. A tia de Linda, embora atarefada, fez questão de confeccionar o vestido de noiva. E Linda entrou na igreja, esplendorosa, sendo levada pelo tio que ficou tão emocionado que chegou a derramar lágrimas. Muita gente também se emocionou.

Saindo da igreja, o casal caminhou até a rua comercial. Esse lugar era especial para ambos, pois era onde ficava a loja de frutos do mar e o mercadinho de produtos brasileiros. Nesse dia, os lojistas saíram para saudar o casal que passava. Os fregueses de longa data da loja de Naotaro e os decasséguis que frequentavam o mercadinho se uniram para saudá-los, desejando toda a felicidade do mundo.

Começou vida nova para os dois, com Linda continuando a trabalhar no mercadinho. A novidade passou a ser o pão de queijo com recheio de calabresa, outra criação de Linda.

Naotaro continua trabalhando junto com o pai, com a maior disposição do mundo.

O sonho dos dois é um dia abrir um pequeno restaurante, onde a pedida será o shiokara e o pão de queijo, com certeza! 

© 2013 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção trabalhadores estrangeiros Nikkeis no Japão
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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