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História nº 46: Quem é a Li-Ha-Na da pintura?

Hana casou-se no dia em que completava 27 anos de idade. O noivo, Eidi, tinha 24 anos e era o irmão mais novo de uma ex-colega de classe de Hana.

Seis meses antes, essa colega a havia procurado, dizendo que o seu irmão iria trabalhar como decasségui no Japão e a família tinha achado melhor que ele se casasse antes e, assim, começou a procura por uma noiva. Daí, a primeira ideia que veio à mente foi a ex-colega de turma.

Hana, que tinha acabado um relacionamento cerca de dois anos antes, por ora não estava a fim de se casar, mas aceitou ser apresentada a Eidi. Os dois começaram a sair, se conheceram melhor e, devido à proximidade da data de embarcar ao Japão, casaram-se após poucos meses de namoro.

Começou assim a vida de recém-casados no Japão. Os dois trabalhavam na mesma fábrica e nos dias de folga passeavam juntos pela cidade. Eidi jogava futebol com a turma de decasséguis, enquanto Hana frequentava o curso de língua japonesa.

Dois anos depois, nasceu-lhes a filha Lina. Mas, devido à gravidez, Hana desenvolveu hipertensão pós-parto, o que fez com que a sua mãe viajasse às pressas para o Japão para lhe dar o suporte necessário.   

Era para ficar de três a quatro meses, mas, de repente, Eidi pediu demissão do emprego.

Aparentemente parecia estar bem, porém, ele tinha sido diagnosticado com a Síndrome de Burnout e considerado incapaz de continuar seu trabalho na fábrica. Ele começou a falar que queria voltar para o Brasil.

Ao ouvir isto, Hana piorou e ficou acamada, mas ainda teve tempo para pedir para o marido fazer o tratamento no Japão mesmo e depois retornar à vida normal.

Eidi, porém, não concordou e acabou indo embora para o Brasil.

Por sua vez, Hana decidiu permanecer no Japão. A sua pressão arterial voltou ao normal, estava bem de saúde, então, com a ajuda de sua mãe nas tarefas domésticas e nos cuidados para com a bebezinha, ela retornou ao trabalho.  

Depois de voltar ao Brasil, Eidi telefonou duas vezes: na primeira, disse tinha que ter paciência porque o seu tratamento iria demorar, mas o que mais queria era voltar logo, pois estava com saudades da esposa e da filhinha. Na segunda vez, que foi algum tempo depois, ele pareceu animado dizendo que tinha arrumado emprego. Depois disso, nada de notícias dele.

Pouco depois, o irmão mais novo de Hana, que havia concluído o curso numa universidade brasileira, conseguiu emprego numa empresa do Japão e acabava de chegar. A sua mãe retornou uma vez ao Brasil, convenceu o marido a largar o emprego de funcionário numa empresa e, juntos, vieram para começar uma nova etapa em suas vidas trabalhando no Japão.

Assim, a família estava novamente reunida e todo mundo feliz vendo a Lina crescer e se desenvolver. E, ao concluir o ensino fundamental, ela foi visitar o Brasil pela primeira vez, junto com sua mãe.

Era o mês de dezembro e a primeira impressão que teve de São Paulo foi de ser um lugar quente, abafado, muito ruim para se viver. “Em que lugar de São Paulo será que o meu pai está?” – Lina queria muito saber.

Manhã de domingo, Hana e Lina foram conhecer a feira de artesanato da Praça da República, na região central da cidade. Hana, que havia vivido em São Paulo até ir ao Japão, nunca tinha estado nesse lugar.

No tempo em que morou no Japão, Eidi um dia falou assim: “Tenho vontade de ir um dia à Praça da República. Quando eu ainda era estudante, pintava quadros a óleo e vendia bem lá. O japonesinho é bom nisso, falavam assim...”

Hana se lembrou disso e ficou com vontade de ir ver.    

Havia uma série de barracas vendendo presentes e lembranças típicas do Brasil, artesanatos variados, bijuterias e acessórios.

Hana pegou um pendente e uma pulseira feita com pedras semipreciosas e quis saber qual a filha preferia. Virou-se para o lado, mas ela não estava perto.

Colocou as joias de volta na embalagem e foi procurar por Lina.

“Ela disse que queria comer pastel...” e foi se aproximando das barracas de salgadinhos e de pastel frito na hora, quando avistou Lina correndo em sua direção.

- Mamãe! Mamãe! Veja!

Era um quadro de 60cm X 40cm que a filha trazia nos braços com cuidado. A pintura de uma jovem de fisionomia oriental, cabelos pretos na altura dos ombros e um sorriso encantador.

- Comprei porque parece muito com a mamãe. Eu te dou de presente!

- Fico muito feliz, filha. Mas não foi caro?

- Tranquilo! Ganhei um montão de mesada! Vou comprar pastel, tá?

Tarde da noite no quarto do hotel, Hana pegou o quadro e, como não quer nada, virou-o para ver a parte de trás.

Foi quando ela viu escrito no canto direito inferior: Para Li-Ha-Na

Muitas coisas passaram ao mesmo tempo pela sua cabeça, tanto que nem chegou a dormir direito, mas, no dia seguinte, ela fez as malas preparando-se para a viagem de volta ao Japão com a filha.

O quadro agora está enfeitando o quarto de Hana.

 

© 2024 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção trabalhadores estrangeiros Japão Nikkeis no Japão
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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