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História nº 47 (Parte I): “Eu quero voltar, mas não posso...”

Eidi tinha duas irmãs acima dele e, sendo o único filho, foi educado para futuramente seguir a carreira de médico. Suas irmãs, Emi e Érica, ajudavam nas tarefas domésticas e no supermercado de propriedade da família, mas Eidi dedicava o seu tempo unicamente aos estudos.

Cursando o último ano do ensino médio, de manhã ia ao colégio, à tarde ao cursinho preparatório, à noite estudava em casa e nos fins de semana estava no cursinho revisando as matérias e fazendo testes simulados.

Era sábado quando três primos que estavam de passagem por São Paulo convidaram Eidi para um passeio ao Bairro Oriental, na Liberdade. Eidi deixou de ir ao cursinho e foi junto.

Era como se tivesse entrado num mundo à parte, tudo que via e os sons que lhe vinham aos ouvidos, tudo era novidade! À noite, ele começou a pintar, coisa que mais gostava de fazer. Queria deixar registrado em quadros as cenas do Bairro Oriental que o deixaram fascinado!

Concluiu o ensino médio e prestou exames vestibulares, mas não foi aprovado. No ano seguinte, frequentou as aulas do cursinho e tentou novamente, mas não conseguiu entrar. Ele sabia que não tinha a capacidade necessária para vir a ser um médico, mesmo assim, seu pai o incentivou a continuar tentando.

Às vésperas de prestar o vestibular pela terceira vez, ele quis espairecer e foi à Praça da República. Como da outra vez que esteve visitando o Bairro Oriental, queria conhecer um ambiente diferente do seu, com pessoas, coisas e sons nunca experimentados.

E foi lá na Praça da República que, casualmente, avistou a professora Julieta que tinha ensinado Artes quando ele estava no ensino fundamental. Ele a reconheceu prontamente: inconfundível na túnica preta ornamentada com colares coloridos e o penteado tipo maria-chiquinha.

“É a professora Julieta, não? Sou o Eidi, fui seu aluno no ensino fundamental. Lembra-se de mim?”

“Eidi!!! Claro que eu lembro! Bons alunos com um futuro promissor são poucos, como haveria de esquecer?”

A professora lembrou que Eidi era um aluno aplicado em todas as matérias e, como gostava de desenhar desde criança, no ensino fundamental tinha um talento especial para fazer o retrato dos colegas e professores, também era craque em ilustração e mangá.

Conversaram animadamente e a professora o convidou para visitar o seu ateliê tão logo terminassem os exames vestibulares.

E enquanto aguardava a publicação dos resultados, Eidi fez uma visita à antiga professora. Era uma casa na periferia de São Paulo cercada de verde, onde havia um ateliê onde a professora dava aulas e um tipo de alojamento para receber pintores novatos.

Pouco depois, Eidi viu que novamente não tinha sido aprovado e começou a frequentar o ateliê da professora e, para se dedicar ainda mais, passou a se hospedar no alojamento.

Quando a família soube que ele estava na casa da professora convivendo com pessoas estranhas, todo mundo ficou apreensivo e começou a pensar numa solução para trazê-lo de volta.

“E se a gente mandá-lo trabalhar no Japão? Assim, poderá juntar dinheiro e montar seu próprio ateliê, poderá pintar à vontade sem precisar ficar na casa dos outros” – falou Emi, enfatizando a ida do irmão ao Japão.

“Mas o Eidi nunca trabalhou na vida, será que é bom ele ir sozinho?” – a mãe mostrou preocupação.

“Já sei! A melhor coisa é procurar uma boa esposa para ele, assim os dois vão juntos, que tal?” – falou o pai.

“É isso! Eu conheço a pessoa ideal para apresentar ao Eidi. É a Hana, ela foi minha colega no ensino médio, um amor de pessoa, os dois podem se dar muito bem!” – falou Érica toda animada.

A família apoiou a ideia e logo Érica apresentou Hana a Eidi, os dois se conheceram melhor, namoraram e poucos meses depois se casaram.

Eidi começou sua nova vida com Hana no Japão e, dois anos depois, nasceu a filhinha Lina.

O casal ficou muito feliz, mas algo totalmente imprevisto aconteceu a ambos.

Devido à gravidez, Hana teve hipertensão pós-parto e precisou de cuidados. Eidi dedicava sua atenção à saúde da esposa e cuidados com a filhinha recém-nascida, mas começou a sentir um cansaço fora do normal, até perdeu a motivação para fazer as coisas.

A mãe de Hana viajou ao Japão para dar suporte ao casal, Eidi, porém, foi piorando a ponto de ficar irritado e causar uma série de erros no seu trabalho. Por fim, foi diagnosticado com a Síndrome de Burnout e precisou de tratamento.

Hana queria que o marido se submetesse ao tratamento no Japão mesmo, mas Eidi achou que a prioridade era a recuperação da esposa. Também não queria dar trabalho para a mãe de Hana, atarefada cuidando da filha adoentada e da netinha recém-nascida.

Desse modo, ele achou melhor se tratar no Brasil e retornar o quanto antes para o Japão para ficar junto da família.

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Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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