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História nº 11 (Parte II): Clayto não quer mais saber de samba

Clayto queria muito ficar conversando com o seu pai, já que haviam se encontrado após 15 anos, mas Keila alertou: “O papai tem pressão alta, não pode se emocionar muito que faz mal, então, hoje fica por aqui, depois vocês continuam a conversa”. Então, depois de um tempão sem poder lhe dirigir estas palavras, falou “Boa noite, papai”, e foi para fora.

O céu estrelado pareceu-lhe mais bonito do que nunca. Para falar a verdade, até então, ele não tivera tempo para essas coisas. Desde que chegou ao Japão como decasségui, o trabalho na fábrica era muito mais duro do que esperava e, o que ele via na sua frente, eram apenas as máquinas funcionando sem parar e a cara pingando suor dos colegas. Ele quis fugir dessa situação tão deprimente e foi, de cidade em cidade, à procura de um modo mais fácil de viver, mas o que conseguiu encontrar foi a casa de pachinko e uma  boate qualquer.

Mas quando apareceu a oportunidade de ensinar samba na escola de dança, ele pensou: “É isto mesmo! Este sim é o trabalho que eu sempre quis!”. Sua mãe, que era brasileira, gostava de carnaval e samba era com ela. Clayto também era bom nisso, até tinha desfilado na escola da samba na ala das crianças. Ensinar samba era tudo que ele queria, rodeado de mulheres, as aulas eram pura diversão. O dono da escola tinha gostado dele e confiava muito. No entanto, Clayto acabou traindo essa confiança.

Depois de tudo que aconteceu, ele estava firme para recomeçar a vida. Olhou para o céu e teve certeza disto.

Na manhã seguinte, o seu pai e a sua irmã saíram para trabalhar. Clayto ficou preocupado com seu pai – tinha pressão alta e trabalhar ao ar livre como guarda no canteiro de obras não era um serviço adequado. Pensou: agora tinha chegado a sua vez de ganhar dinheiro e dar conforto e bem-estar ao pai o quanto antes. E saiu para procurar emprego.

Uma semana depois, Clayto começou a trabalhar numa fábrica de produtos alimentícios. Na véspera, ele estava jantando no apartamento onde moravam o pai e a irmã, quando o pai começou a falar:

- Filho, eu te peço que me perdoe, te devo muitas desculpas pelo que aconteceu. Naquela vez que tive alta do hospital, minha intenção era voltar direto para casa, mas só de pensar como é triste a casa sem a Luzia, a Keila e a Kátia, eu resolvi ir buscar todo mundo.

- O quê?! Foi até Pernambuco?

- Na verdade, depois que deixou a nossa casa, a Luzia não foi embora para Pernambuco, ela foi para casa de parentes. Eu bem que imaginei isso e fui à casa desses parentes. Mas ela e as meninas não estavam mais lá. Falaram que tinha ido para a casa do irmão dela em Minas e eu fui atrás.

- Ah, foi isso? Foi procurar o tio Antônio?

- Cheguei lá, conversei, mas a Luzia não mudou de ideia. Ficou repetindo que estava cansada dessa vida de pobre e eu não consegui convencer ela a voltar.

- E o que fez então?

- Sabe, quando eu estava no hospital, o senhor do leito ao lado me falou uma coisa. Que se a gente for trabalhar no Japão, vai ganhar um dinheiro que aqui nunca ia ganhar e que dá até para fazer um bom pé de meia. A família dele fazia dois anos que estava trabalhando lá e ele lamentava muito que não pôde ir junto por sofrer do coração.

Nesse instante, Keila trouxe o chá, sugerindo que o pai fosse descansar.

- Não, de jeito nenhum, tenho que contar tudo hoje, pois amanhã o Clayto começa seu trabalho. Aí me deu uma vontade de ir trabalhar no Japão e fui procurar a agência de recrutamento em São Paulo. E dois meses depois eu já estava começando vida nova no Japão. Meu grande sonho era juntar bastante dinheiro, voltar ao Brasil e começar vida nova com a família, nós cinco, né? Mas, aconteceu o que aconteceu...

De repente, o pai parou de falar e ficou de cabeça baixa, sem se mover.

Nesse momento, Clayto sentiu estar compartilhando toda espécie de sentimentos que o pai havia experimentado. Esse pai que agora em nada se parecia com aquele pai durão de antes. Infelizmente o sonho do seu pai não tinha se concretizado, mas agora tanto fazia. Ter o pai junto dele era o que bastava, as coisas passadas já não tinham importância. Ele queria encorajá-lo a seguir em frente com confiança, agora que tinham se reencontrado.

Keila, que estava na cozinha, aproximou-se e olhando em direção ao pai, retomou a conversa.

- Sabe, o papai trabalhou com dedicação, pensando em nós. Durante sete anos nos mandou dinheiro, até para o nosso tio com quem você ficou morando. E graças às remessas dele foi que a nossa vida melhorou pouco a pouco. Nós voltamos para São Paulo, mamãe alugou um apartamento, eu e a Kátia pudemos frequentar escola particular. Três anos depois, mamãe abriu uma loja de roupas, no começo até que estava indo tudo muito bem. Mas veio a crise econômica, ficou difícil manter a loja e, sem outro jeito, teve que fechar. Ficaram somente as dívidas e, assim, nos mudamos para uma casinha na periferia, eu pedi transferência para uma escola estadual, a Kátia arrumou emprego. A mamãe tentou vender as roupas que sobraram para conhecidos, mas não deu certo. Quando papai chegou foi essa a situação que encontrou: não tinha sobrado nenhum dinheiro na poupança e você havia saído da casa do tio e ninguém sabia do seu paradeiro. Ele ficou tão arrasado, que perdeu o ânimo para voltar a trabalhar no Japão e começou a beber de novo. Eu achei que desse jeito não podia ficar, então esperei terminar o colegial e vim junto com o papai para cá. Mas nem em sonhos pensaria que pudesse encontrar você aqui.

Clayto estava emocionado. Ele que passou esses quinze anos pensando que o pai tinha o abandonado. Mas a verdade era outra. Sentiu-se culpado por ter pensado injustamente e seus olhos começaram a lacrimejar. Aproximou-se do pai que agora estava com a fisionomia mais serena, parecendo estar aliviado pelo filho ter conhecido a verdade. Mas não arriscou olhar fixamente para ele, estava sem jeito, pois não pudera fazer grande coisa pela família.

Nessa noite, Clayto conseguiu dormir em paz, isso depois de muitos anos.

De manhã cedo os três saíram juntos de casa. Clayto e Keila, lado a lado, começaram a entoar uma canção infantil que costumavam cantar juntos nos tempos de criança. O pai seguiu atrás, pedalando devagar, de vez em quando enxugando as lágrimas que escorriam espontaneamente.

 

© 2013 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção trabalhadores estrangeiros Nikkeis no Japão
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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