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Fronteiras Transpacíficas: artistas nipo-brasileiros

A artista Madalena Hashimoto Cordaro e a curadora Michiko Okano na abertura da exposição Fronteiras Transpacíficas. (Foto por Todd Wawrychuk)

Nasci no Japão e, quando eu tinha oito anos, meus pais decidiram que imigraríamos para o Brasil. Foram longos quarenta dias de travessia no navio Sakura-maru pelo Oceano Pacífico, que faziam que a distância entre os dois países parecesse ainda maior. No decorrer dos anos em terras brasileiras, a questão da identidade foi se tornando algo muito presente na minha vida: a cultura natal e a local se confrontavam – ora se chocavam, ora se afastavam, ora se fundiam. Pertencer “ao aqui” ou “ao lá”, veio a ser, então, uma questão que me era colocada quase que cotidianamente e que ficava sem resposta, até o momento em que assumi esse espaço intervalar como um lugar possível, prenhe de potencialidades, de mesclas, do rico e do novo.

Trata-se de uma perspectiva que corresponde ao espaço-entre, fronteiriço, que os japoneses denominam de Ma e que se expressa em todos os âmbitos da cultura, como, por exemplo, na arquitetura, nos terraços engawa das casas tradicionais japonesas, os quais pertencem ao interno ou/e ao externo, dependendo da relação entre os ambientes a ser organizada. A questão da identidade, nesse sentido, mostra-se fluida e aberta à “concordância” que se queira estabelecer com as diferentes culturas: novas e diversas identidades assim se constroem.

A pesquisa da exposição Fronteiras Transpacíficas: a arte da diáspora japonesa em Lima, Los Angeles, Cidade do México e São Paulo (Transpacific Borderlands) traz em si muito dessa vivência e iniciou-se em 2014 com um questionário destinado aos artistas, cujo enfoque era a identidade. As respostas trouxeram variados conteúdos. De uma maneira genérica, pode-se dizer que os nipo-latinos pertencem simultaneamente a dois ou mais lugares ou a nenhum, em alguns casos.

Dependendo do país em que se fixaram, a “concordância” estabelecida pelos artistas com o ambiente político, econômico e social é distinta: no Peru, observa-se que a questão do governo Fujimori é marcante; no México, a mais antiga imigração japonesa latino-americana, a presença dos artistas do Japão está fortemente ligada à paixão pela cultura mexicana; nos EUA, o que os nipônicos enfrentaram durante a Segunda Guerra Mundial é incomparável e, no Brasil, que possui a maior comunidade japonesa do mundo, a formação de grupos de arte na década de 1930 é um fato importante.

No caso brasileiro, existe uma grande diferença entre os artistas imigrantes japoneses pré-guerra, que vieram como trabalhadores agrícolas a partir de 1908 e os do pós-guerra, que chegaram com uma certa formação artística do Japão. Existem também os artistas descendentes de japoneses de segunda, terceira e quarta gerações, nos quais é possível verificar uma diversidade de identidades: uns possuem uma relação intrínseca com o Japão, de modos variados; outros negam a sua identidade nipônica; há também os que constroem um outro Japão dentro do Brasil e aqueles que não sentem necessidade de se identificar com uma etnia.

Para a curadoria da exposição, foram escolhidos três artistas nipo-brasileiros: Erica Kaminishi, residente em Paris, Madalena Hashimoto Cordaro, de São Paulo e Oscar Oiwa que mora em Nova York.

Erica Kaminishi (Foto por Todd Wawrychuk)

Erica e sua obra possuem um forte laço com o Japão, onde a artista residiu em dois períodos distintos de sua vida: a primeira vez como dekassegi e a segunda como estudante de pós-graduação. Tal relação foi permeada pelo fato de ter enfrentado o preconceito dos japoneses em relação aos nipo-brasileiros, sobretudo na sua primeira experiência.

Na exposição, ela apresenta a cerejeira, símbolo de transitoriedade e primavera no Japão, em uma instalação denominada Prunusplastus, em que insere, dentro de placas de petri, mais de 3.000 flores artificiais e as pendura do teto. A artista compõe uma florescência de cerejeiras de plástico, enclausuradas em invólucros do mesmo material, que nunca fenecem. Brinca, assim, tanto com a oposição natureza/ciência, justapondo a flor e as placas de petri, bem como com a efemeridade/permanência, substituindo a fugacidade característica da planta por materialidade duradoura, o que também revela o olhar crítico da artista sobre essa simbologia tão conhecida no Japão e no mundo.

Essa oposição é também encontrada na obra Clouds, série de quatro painéis, que mistura a estética japonesa - uso da nuvem, elemento muito comum na pintura nipônica, a presença do dourado, frequente nas pinturas da Escola Kano -, e o poema, em português, de Fernando Pessoa “O que nós vemos das cousas são as cousas” (Alberto Caieiro, O Guardador de Rebanhos, - Poema XXIV). 

Erica Kaminishi, Clouds 08 (da série “Clouds”), 2016. (Foto: Cortesia da artista)

Destaco dois fragmentos do texto:

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo
Uma aprendizagem de desaprender 

Em primeiro lugar, o poeta aponta a nossa incapacidade de ver as coisas como elas são, libertos de todas as preconcepções que nos acompanham no momento de lançar o olhar para algo. Ver uma cerejeira em flor na natureza traz um encantamento, um estado de possibilidade de se desvincular dos pensamentos, de se desnudar a alma ... e uma obra de arte arrebatadora também evoca o sentimento do admirável.

E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas,
Nem as flores senão flores.
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores. 

Tal referência à flor de curta duração é o motivo pelo qual Erica inscreveu na obra ou preencheu espaços com as letras do poema, o que passa despercebido para um olhar menos atento.

Madalena Hashimoto Cordaro (Foto por Todd Wawrychuk)

Madalena Hashimoto Cordaro foi várias vezes para o Japão, a fim de estudar a língua e a arte japonesas, e realizou o mestrado em Artes nos Estados Unidos. Foi por longos anos professora no Centro de Estudos Japoneses da Universidade de São Paulo e é uma exímia pesquisadora de arte da estampa da Era Edo (1603-1868).

Também alimentada pela experiência acadêmica, desenvolve técnicas e modos de pensar japoneses nas suas obras artísticas, como a questão da justaposição de elementos, a sequencialização isenta da relação causa e efeito, a serialização, a introdução de temáticas japonesas e o formato orihon (livro acordeão). Todavia, a sua memória de infância e adolescência no Brasil está presente, como as lembranças da crença católica - sua família era do grupo dos cristãos ocultos – e do movimento estudantil da década de 1960 apresentados no orihon. As fotografias de amigos, conhecidos e a sua própria, bem como das figuras emblemáticas japonesas e ocidentais compõem a obra Thousands Faces.

Algumas técnicas utilizadas nessa obra como a da collorgraph e computação gráfica foram inovadoras na época em que a autora viveu nos Estados Unidos. A denominação Thousands Faces dialoga com o uso de números nas produções artísticas, como a famosa obra Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji de Hokusai, fazendo referência à questão da serialização. Para a artista, a obra não correspondia à busca de identidade em si, mas à captura do olhar da diversidade - de uma pessoa que viveu no Japão, Estados Unidos e Brasil - e de estabelecer igual importância às faces de todas as etnias.

Oscar Oiwa (Foto por Todd Wawrychuk)

Oscar Oiwa estudou arquitetura, participou da 21ª Bienal Internacional de São Paulo, conviveu com artistas estrangeiros e resolveu sair do Brasil para experimentar a vida artística no Japão, onde viveu por quase dez anos, seguido de um ano em Londres e 16 anos em Nova York. Para ele, a etnicidade não é uma questão a considerar, porque se declara cidadão do mundo.

Assim, nas duas obras do artista escolhidas para a exposição, pode-se ver a multiplicidade do olhar: Crowd foi realizada no Japão e é possível, ao observá-la, sentir a falta de espaço na pintura, a compactação dos edifícios, em tons de preto, cinza e amarelo, que formam interessantes jogos de luzes e sombras. Na obra Black Snowman, ele surpreende o espectador ao trazer a neve e o boneco pretos, criando uma paisagem fantástica formada por cortes de ambientes internos das casas. De acordo com o artista, a neve preta é metáfora de balas de chumbo, frequentes nas favelas brasileiras.

Oscar Oiwa, Crowd, 2010. (Foto: Cortesia da artista.)

Oiwa traz, como cidadão do mundo, a questão da globalização ou atuação global, muito frequentemente abordada nos dias de hoje, resultado da facilidade de deslocamento tanto físico quanto virtual em comunicações digitais. Borram-se fronteiras nacionais, conectam-se hábitos e culturas, , dialoga-se com sistemas organizacionais do pensamento e pode-se hibridizá-los gerando novas experiências, associações e interconexões.

Vivemos numa época em que se compreende a identificação como uma construção através do tempo, por meio de processos inconscientes e conscientes, e não como algo inato. Desse modo, a afinidade grita mais alto, e torna possível pertencer a tribos ou a culturas com as quais haja maior empatia, sem estar preso a uma nacionalidade fixa. 

Voltamos ao início: nem aqui nem lá, mas unm espaço Ma constituído de uma identidade fluida e múltipla.

É esse espírito que anima a exposição Fronteiras Transpacíficas: apesar de terem existido mostras de artistas nipo-peruanos, nipo-mexicanos, nipo-americanos, ou nipo-brasileiros, não ocorreram até o momento, exposições que reunissem todos eles, colocando-os lado a lado. Acredito, portanto, que se trata de um marco na história das exposições. E se os artistas tendem a estar na dianteira da transformações culturais e são agentes de criação de novas identidades, este evento é um testemunho de um momento importante da história nipo-latina, vista da perspectiva da arte.

* * * * *

Fronteiras Transpacíficas: a arte da diáspora japonesa em Lima, Los Angeles, Cidade do México e São Paulo
17 de setembro de 2017 - 25 de fevereiro de 2018
Japanese American National Museum, Los Angeles, Califórnia

Essa exposição examinará as experiências de artistas de ancestralidade japonesa que nasceram, cresceram ou vivem na América Latina ou em bairros predominantemente latino-americanos no sul da Califórnia. 

Para mais informações >>

 

© 2018 Michiko Okano

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About the Author

Michiko Okano possui doutorado em Comunicações e Semiótica e é Professora Assistente de História da Arte Asiática na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Também trabalha como docente colaboradora no Programa de Pós Graduação no Centro de Estudos Japoneses da Universidade de São Paulo (USP) e Coordenadora do Grupo de Estudos da Arte Asiática (GEEA). Okano é a autora de Ma: in between spaces of art in Japan (Annablume, 2011) e Manabu Mabe(Folha de S.Paulo, 2013). Entre seus projetos culturais destacam-se Olhar InComum: Japão Revisitado (UnCommon Gaze: Revisited Japan) (Museu Oscar Niemeyer, Curitiba, Paraná, Brasil, 2016). O foco de sua pesquisa é o diálogo criado pelas migrações da arte e artistas entre o Japão e o Ocidente, com particular interesse nos artistas nipo-brasileiros.

Atualizado em janeiro de 2018

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