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Um jovem multi-artista tradicional

Marcel durante demonstração de cerimônia do chá (foto: Arquivo pessoal)

No Brasil, não é raro encontrar um nikkei que pratique uma das artes tradicionais japonesas. caligrafia (shodo), cerimônia do chá (chanoyu ou sado) ou instrumentos musicais como koto ou shamisen são alguns exemplos.

Difícil é encontrar alguém que pratique todos regularmente. Ainda mais se falar japonês e tiver sido ordenado monge budista. Contra essas probabilidades, conhecemos Marcel Ueno, 33 anos, descendente de terceira geração, cuja família tem origem nas províncias de Fukuoka e Tokushima.

Quando criança, Marcel costumava assistir aos não muito numerosos desenhos e seriados japoneses exibidos no Brasil. Mesmo repleto de elementos de fantasia, lutas coreografadas e efeitos especiais, ele conseguiu observar situações em que, de alguma forma, as artes tradicionais japonesas eram praticadas. Outra forma de obter referências foi pela leitura de mangás. “Meus pais incentivaram, e eu mesmo ia atrás das pessoas, dos senseis. Na adolescência e vida adulta, comecei a ter oportunidades de encontrar essas pessoas que poderiam me ensinar”, lembra.

Na época, a internet ainda dava seus primeiros bits de vida no Brasil. Assim, aos 18 anos, Marcel teve que procurar escolas ou professores à moda antiga: por meio de jornais da comunidade nikkei e livros.

Marcel é formado e trabalha com arquitetura. Conforme mencionado anteriormente, ele pratica shodo, shamisen, koto e cerimônia do chá. “Tenho mais prática de shodo, que estudo há mais tempo”.

O estudo da caligrafia clássica japonesa tem algumas particularidades. Por meio de sua professora no Brasil, Marcel se filiou a uma associação, a Shosai Shoken, de Tokyo. Mensalmente, ele precisa enviar as folhas físicas de tarefa para a matriz. “Através dessa associação, eu consigo também classificação. Assim como nas artes marciais, no shodo há as graduações, os ‘kyu’ e os ‘dan’. Tive oportunidade de prestar provas e, recentemente, consegui o título de assistente de professor”, explica.

A perpetuação da cultura japonesa é um assunto constantemente discutido na comunidade nipo-brasileira. “Eu sempre tive a vontade de que isso [a prática das artes tradicionais] não acabasse. Não sei qual será o futuro, pois muita gente não tem interesse. Mesmo assim, percebo que está surgindo uma nova geração que está tomando conhecimento e se interessando”, avalia Marcel.

Em São Paulo, existe uma oferta considerável de cursos de artes japonesas com divulgação que aproveita as modernas redes sociais. O que é notável são classes cheias nos primeiros níveis, mas poucos alunos nos mais avançados.

“Como são artes muito difíceis, é difícil encontrar alguém que tenha aquela vontade e persistência de falar ‘vou fazer isso por uns 10 anos’. Não sei se é porque os nikkeis têm educação com influência japonesa, mas também com influência da cultura ocidental, então não têm a paciência necessária para lapidar o espírito para praticar”, teoriza Marcel.

“As únicas atividades que pratico que têm gente da minha idade é koto e cerimônia do chá. As outras, a maioria é de pessoas de mais idade”, observa. “Uma coisa que me deixou triste foi que, no caso do shamisen, muitos jovens se interessaram e entraram, mas eu fui o único que continuou. Os outros, todos saíram”, lamenta.

Para Marcel, um caminho possível para estimular os jovens na prática das artes tradicionais passa por uma mudança de pensamento. “Tem que ter, dentro da própria comunidade, uma conscientização de que essas artes não são ‘coisa de velho’. É preciso, claro, começar com o clássico para poder desenvolver uma coisa contemporânea. É o que eu tenho visto no Japão hoje. No caso da arquitetura, por exemplo. A arquitetura contemporânea que mantém os traços da arquitetura tradicional japonesa. Vemos muito isso na marcenaria japonesa também”.

Para o futuro, Marcel pensa em se tornar professor. “De shodo e cerimônia do chá, creio que está mais próximo. Apesar de ser a arte que pratico há mais tempo, o shodo é a mais difícil de transmitir, pois é preciso saber escrever em japonês”, conta.

O convívio com professores e alunos com idade mais avançada não é um problema para Marcel. “Sinto que ficam muito contentes por haver uma pessoa jovem que se interessa”, destacando que as aulas, apesar de exigentes, eram tranquilas.

O aprendizado de todas as artes aconteceu em japonês. Além de manter a fluência no idioma, Marcel destaca um outro benefício. “Pelo fato de aprender essas artes em japonês, aprendi também a etiqueta japonesa, especialmente a relação mestre-discípulo. Ao transportar para o português, infalivelmente vai entrar algo mais descontraído, informal, então algo vai se perder”, afirma.


Budismo

Em 2007, Marcel foi bolsista da JICA (Japan International Cooperation Agency) em Sapporo, Hokkaido, para estudar arquitetura.

“Coincidentemente, perto do alojamento da JICA, encontrei um templo budista da mesma linhagem que a minha família segue. Então comecei a frequentá-lo”, conta. Assim, ele decidiu se tornar monge. “Sempre acompanhava minha avó para fazer as orações no butsudan. Desde pequeno, sabia ler a sutra”, lembra.

Para ser admitido, Marcel precisou se filiar ao templo e de uma carta de recomendação de um monge. Lá permaneceu de 2010 a 2011, tornando-se monge filiado ao Jodo Shinshu Hongwanji-ha (Budismo da Terra Pura), cuja matriz é em Kyoto, mas Marcel está registrado em Sapporo.

“Eu frequentei uma espécie de escola técnica filiada ao Nishi Honganji. Nós tínhamos um horário igual de escola do Brasil. Todo dia de manhã, acontecia a oração matinal antes de subirmos para a sala de aula”, conta Marcel.

No que se refere aos alunos, havia dois tipos de regime. Uma parte dos alunos morava no alojamento do templo, enquanto outros alugavam apartamentos próximos. “Na metade do tempo, fiquei no alojamento. Como o custo ficava mais alto, decidi morar fora. No templo, alimentação a lavanderia estavam inclusos, por isso, era mais caro”, explica. Durante sua estada, ele pôde se dedicar exclusivamente aos estudos, pois havia reservado dinheiro para se manter.

“A escola se dividia em vários grupos. Cada grupo era responsável pela ‘apresentação’ do dia, que era puxar o coro da oração, da leitura da sutra. Esse grupo tinha que aparecer com mais antecedência para se preparar, se vestir, para poder fazer a oração da manhã. Ao mesmo tempo, era um treino para algumas ocasiões especiais. Por exemplo, quando havia alguma comemoração no templo matriz, nós fazíamos isso como uma forma de treino, sob orientação do professor”, descreve.

Atualmente, Marcel não está filiado a nenhum templo no Brasil. Mantém suas práticas em casa e continua apto a celebrar missas. Assim como segue se dedicando ao shodo, shamisen, koto e cerimônia do chá.

 

© 2015 Henrique Minatogawa

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About the Author

Henrique Minatogawa é jornalista e fotógrafo, brasileiro, nipo-descendente de terceira geração. Sua família veio das províncias de Okinawa, Nagasaki e Nara. Em 2007, foi bolsista Kenpi Kenshu pela província de Nara. No Brasil, trabalha na cobertura de diversos eventos relacionados à cultura oriental. (Foto: Henrique Minatogawa)

Atualizado em julho de 2020

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