Não tenho muitas memórias vívidas da minha infância, mas me lembro bem daquele dia. Não sei dizer com quantos anos eu estava. Batchan reuniu várias mães, incluindo a minha, sua nora, para o que hoje eu chamaria de um workshop de gyozá. O gyozá da Batchan era famoso entre os familiares e amigos, presença garantida na mesa sempre que visitávamos os avós em Mogi das Cruzes, que fica a uma hora da cidade de São Paulo, onde eu vivo desde os dois anos de idade. Era o melhor gyozá do mundo pois era o único que eu conhecia e comia, de início cismada com o recheio, mas logo entregue ao seu sabor único e inconfundível.
Naquele dia em especial, as mulheres vestiram aventais e se juntaram na cozinha, ao redor da mesa espaçosa de quatro lugares, para aprender a preparar o recheio de carne — Batchan misturava carne de vaca e carne de porco moídas na mesma proporção junto de acelga ou repolho, um pouco de nirá e vários temperos: sal, alho, gengibre, óleo de gergelim, shoyu, etc. —, como posicionar o recheio na massa para fechá-la com as dobrinhas tão características do pastelzinho de origem chinesa, e também os truques para fritar de forma que a carne de dentro pudesse cozinhar completamente. Nós, as crianças, brincávamos pelo quintal cheio de flores e árvores, desviávamos dos paus de bambu que sustentavam o varal de estender roupa, e corríamos atrás dos cachorros que latiam.
Como o preparo de gyozá é demorado e trabalhoso, não fazíamos em casa, mesmo depois da aula da Batchan. Sempre que a visitávamos ou que ela vinha nos ver, ganhávamos gyozá congelado só para fritar e comer. Me ensinou, ainda criança, que misturar shoyu com um pouco do suco de limão espremido já dá um molho muito bom de acompanhamento. Em um restaurante japonês ou chinês, eu nunca pedia gyozá, porque tinha os da minha Bá. Era mesmo uma netinha mimada. Ainda hoje... ainda hoje, há quase dois anos de sua partida, é muito raro comer gyozá fora de casa.
Já adulta, com vinte ou vinte e um anos, Batchan me ensinou a preparar o gyozá. Estávamos aqui em casa, era um fim de semana quente de dezembro, mantínhamos as cortinas escancaradas para clarear o apartamento inteiro. Minha pequena prima por parte de mãe, que tinha cinco para seis anos na época, nos visitava naquele dia e também aprendeu a rechear e a fazer as dobrinhas do gyozá que ela nem tinha provado ainda. Se eu me esforçar e olhar por algum tempo para a mesa em que estávamos todas reunidas, Batchan, minha mãe, minha priminha e eu, talvez eu consiga vê-las ali recheando pasteizinhos. Como se o tempo tivesse parado.
Eu posso sentir, até hoje, a textura da massa fria sobre a palma da minha mão quente, a agilidade que eu não tinha nos dedinhos curtos para formar as dobrinhas feito origami, em um processo artesanal e quase artístico, o aroma tão característico do gengibre e do nirá no recheio cru. O som peculiar do pastelzinho dourando e depois da água fervendo e forrando o fundo da frigideira para dar o devido tempo para a carne cozinhar. A mordida da casquinha crocante e do recheio macio. Fazia questão de sempre comer gyozá com par de hashi ao invés de garfo e faca.
Minha outra prima, essa por parte de pai e apenas quatro anos mais nova, também neta de Batchan, aprendeu o passo a passo do preparo do gyozá ainda adolescente e, mais corajosa — ou porque morava mais longe, em Minas Gerais, e não via Batchan com tanta frequência — preparava gyozá em casa e guardou a receita de cor na cabeça, que hoje compartilhamos. Eu aqui em São Paulo; ela agora em Sabae, na província de Fukui, no Japão.
Batchan, japonesa que veio ainda criança para o Brasil, gostava de presentear os filhos, os netos e os sobrinhos com as comidas que sabia que gostavam. Ela também sabia que era a única que poderia prepará-las tão bem. No meu caso, não era apenas o gyozá, mas também o karê e o inarizushi. Eu, acostumada a comer gohan branco com feijão carioca em casa, me deliciava com sua comida japonesa autenticamente caseira e deliciosa que estava completamente fora da rotina. Se saíamos para comer, Batchan e eu, ela sempre escolhia comida brasileira. Ou um fast food.
Tenho certeza de que Batchan me achava um pouco doidinha, repreensível até, em alguns momentos. Ficava abismada ao me ver na cozinha lavando a louça ou mesmo preparando alguma refeição sem avental que eu sempre me esqueço de vestir. Às vezes vinha em meu socorro e o amarrava ao redor do meu corpo roliço. Em outras, apenas ria ou franzia o rosto em uma expressão divertida de descontentamento. Corria na minha frente para estender as roupas no varal assim que saíam da lavadora porque não gostava do jeito que eu as estendia. Perguntava sem cerimônia se eu tinha penteado o cabelo enquanto eu me preparava para sair de casa para algum compromisso. Eu dava risada e desconversava, e ainda sorrio ao me lembrar, porque não, eu não penteava o cabelo. Mas gostava de passear comigo, pegar metrô, experimentar alguma comida nova na praça de alimentação do shopping e tomar sorvete na volta para casa.
Olho para trás com saudade e emoção, porque ouço suas palavras de incentivo, na sua voz cantada em um português enrolado: “Marina! Não chora!”. É assim que me diz, ainda hoje... ainda hoje, há quase dois anos de sua partida, que está tudo bem. E eu, mesmo com os olhos marejados, posso vislumbrar as mulheres da minha família, das mais diferentes idades e gerações, algumas longe, outras perto. Vejo todas juntas como naquele dia distante da minha infância, rodeando uma mesa em uma cozinha, algumas com avental e outras não — eu com certeza não — preparando juntas alguma comida, mas especialmente o gyozá querido que a Batchan fez questão de ensinar a todas, e conversando trivialidades, rindo, sorrindo, aproveitando um tempo precioso que, se volta, é em forma de memória. No gosto tão característico, único e delicioso do gyozá da Batchan.