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https://www.discovernikkei.org/pt/journal/2021/9/30/lamentable-ruptura/

Lamentável Rompimento

Alunos das Escolas Japonesas de Santa Bárbara, Casa Blanca e San Vicente. A Escola de Santa Bárbara usava uma sala no primeiro templo budista da América do Sul. Fonte: Álbum Gráfico Informativo Peru e Bolívia, editado pelo jornal Nippi Shimpo de Lima, no Peru. O álbum é propriedade do Sr. Rigoberto Eguchi, que o compartilhou para publicação.

 

Eles chegaram no Peru no mesmo navio, o SS Hong Kong Maru. Eram quatro viajantes que faziam parte de um pequeno grupo de emigrantes da Prefeitura de Saga-Kiushu, e devido à proximidade das suas cidades natais, formaram uma forte amizade durante a viagem. O que poderia ser melhor chamada de "uma grande irmandade".

Durante cinco anos trabalharam juntos para a British Sugar nas fazendas Santa Bárbara e Casa Blanca de Cañete, a 140 quilômetros ao sul de Lima.

Quando terminaram os seus contratos de trabalho, dois deles, a quem vou chamar de Tamotsu san e Tsunesuke san, migraram para a cidade de Pisco, a 90 quilômetros ao sul de Cañete. Tamotsu san abriu um restaurante de muito sucesso, localizado a meia quadra do principal mercado da cidade. Por muitos anos, ele teve a reputação de fazer o melhor churrasco de toda a região de Sur Chico [na zona costeira ao sul de Lima] no Peru. A carne cobria dois terços do prato, com quase dois centímetros de espessura, sendo macia e suculenta; um pedaço de osso num lado e uma leve cobertura de gordura no outro davam um sabor especial à carne, impecavelmente cozida à inglesa [mal passada] ou no ponto para bem passada.

Tsunesuke san abriu uma funilaria na rua de pedestres ao lado do mercado, uma boa localização estratégica que lhe assegurava uma numerosa clientela numa época em que os utensílios de cozinha, das áreas de refeição e dos banheiros eram de louça, latão ou galvanizados, fazendo com que fossem suscetíveis a estragos e precisassem de reparos.

Kanichi san e Masashi san se estabeleceram em Cañete, tendo decidido alugar pequenos lotes de terras agrícolas no município de San Luis, nas cercanias da Fazenda Santa Bárbara. Com as economias geradas pelo cultivo destes terrenos, como também com o dinheiro acumulado durante os seus anos sob contrato, Masashi e sua esposa optaram por fazer uma mudança, abrindo também com sucesso um restaurante no povoado logo ao lado da fazenda Santa Bárbara.

Kanichi, por sua vez, decidiu comprar o lote alugado, e com o passar dos anos expandiu a propriedade, anexando os terrenos vizinhos. Enquanto isso, ele obteve posições de liderança na associação da Colônia Japonesa de Cañete, alcançando uma destacada participação no crescimento da comunidade.

Com o começo da guerra e a entrada do Japão no conflito, os japoneses sofreram sérias consequências como resultado das leis decretadas pelo governo peruano. Houve confiscos, deportações, e limitações nas atividades comerciais e de movimento dentro do território nacional. Em meio a tais adversidades, a amizade entre os quatro amigos também sofreu devido a esta situação difícil. No entanto, pelo fato deles morarem em Cañete, a amizade entre os srs. Kanichi e Masashi continuou muito forte.

Até que de repente ocorreu um distanciamento inesperado que coincidiu com a situação cada vez mais desfavorável do Japão no teatro da guerra. Masashi, que naquela época havia se mudado para a cidade de San Vicente, capital da província de Cañete, fazia com frequência a viagem de meia hora, acompanhado pela esposa, para visitar o seu amigo do peito. Nas suas conversas, o assunto de praxe eram as notícias da guerra e a situação do Japão em franco processo de deterioração, o que era corroborado pelas informações que recebiam diretamente de Sato san, membro da Colônia Japonesa de Cañete, e dono de uma oficina de conserto de eletrodomésticos. Contornando a proibição de ouvir emissões de ondas curtas, ele captava as novas através da transmissão direta da Rádio Tóquio, usando um receptor de ondas curtas desmontável que ele havia construído com peças de vários receptores descartados.

Com esses recursos, diariamente, por volta das três da manhã, ele começava a montar e instalar o seu rádio receptor de ondas curtas. Em seguida, ele colocava um pedaço de fio de cobre de cerca de nove metros entre a sua oficina e o quintal, usando-o como antena receptora. Quando terminava o noticiário transmitido do Japão, ele voltava a desarmar o receptor, escondendo os componentes em áreas diferentes da sua oficina, assim conseguindo contornar as revistas periódicas feitas pela polícia investigativa da cidade.

Desta forma, uma fonte confiável mantinha Masashi em dia sobre a situação nas diferentes frentes da guerra. À medida que o Japão passou a acumular derrotas ao longo da sua ofensiva, as conversas com Kanichi ficaram cada vez mais difíceis, como aconteceu nos últimos meses de 1944.

O seu amigo se recusava categoricamente a admitir a difícil situação. Suas razões tinham como base publicações que recebia clandestinamente, contrabandeadas de São Paulo, no Brasil, e as quais afirmavam o oposto do que Masashi dizia. O Japão estava ganhando a guerra e as más notícias veiculadas pela imprensa e rádios no país nada mais eram que propaganda ditada pelos Estados Unidos, distorcendo a realidade.

Quando Masashi tocou no assunto da derrota [japonesa] na batalha do Golfo de Leyte, Kanichi disparou furiosamente a frase que estragou o relacionamento deles: “Você é um derrotista e mau japonês. Todos devemos estar preparados para a insurreição. Há muito tempo que eu venho te pedindo para ajudar economicamente e mandar auxílio à nossa pátria, e para que a gente economize o suficiente para custear as despesas do nosso retorno triunfante ao Japão. Mas você insiste no lado negativo”. Em seguida, dando um soco na mesa, ele gritou: “Você não é japonês, é um traidor!”

Contendo as lágrimas nos olhos, Masashi saiu da casa [de Kanichi] sem dizer uma palavra; simplesmente, com um gesto, ele indicou à esposa que a visita tinha chegado ao fim. Internamente, ele se sentia corroído pela ideia de ser um mau japonês por ter aceito a derrota, quando desejava intensamente a possibilidade de uma vitória final.

Alguns meses depois, perto do final de dezembro, Kanichi enviou um convite a Masashi para que viesse à sua casa para a comemoração do Oshogatsu no dia 1º de janeiro. De manhã cedo no primeiro dia de 1945, a esposa lembrou a Masashi da festa para a qual eles haviam sido convidados. Ele respondeu na negativa: “Não vou comparecer”.

No final, sem ter obtido uma resposta na afirmativa, ela decidiu comparecer acompanhada do filho mais novo para que assim pudesse cumprir com um ato de cortesia: o de transmitir de um amigo para o outro os votos de felicidades para o novo ano. Levando o filho pela mão, ela fez a viagem até a casa de Kanichi em San Luis. A ausência de Masashi na reunião foi considerada uma ofensa pelo anfitrião, que, em resposta à saudação da esposa de Masashi, respondeu rispidamente: “Diga ao seu marido que ainda o considero indigno de ser japonês. Ele é um traidor covarde”.

A esposa recebeu a resposta sem mudar de expressão, não demonstrando o menor desconforto; e preservando a compostura com total naturalidade, ela entregou o omiyage – o presentinho que havia trazido. Então, abaixando levemente a cabeça em cortesia, ela pegou o seu filho pequeno pela mão, indicou que ele deveria se despedir respeitosamente dos donos da casa, deu meia volta e deixou Kanichi e sua esposa atônitos.

Já na rua, olhando o garoto nos olhos, ela disse: "Korewa, Shindo Renmei desu" ("Esse é o Shindo Renmei" *). E assim, no dia 1º de janeiro de 1945, uma bela amizade de anos chegou ao fim.

* Shindo Renmei era um grupo que, através dos seus discursos, apartou os imigrantes no Brasil, chamando de Kachi Gumi (Grupo Vencedor) aqueles que apoiavam a vitória do Japão e, desdenhosamente, Make Gumi (Grupo dos Vencidos) aqueles que aceitavam a derrota. Como meio de divulgação, criaram uma publicação clandestina através da qual difundiam notícias triunfantes mesmo após o Japão ter perdido todas as possibilidades de vitória. O movimento chegou ao Peru, onde conseguiu atrair um número desconhecido de simpatizantes.

 

* * * * *

O nosso Comitê Editorial selecionou este artigo como uma das suas histórias favoritas da série Gerações Nikkeis: Conectando Famílias e Comunidades em espanhol. Segue comentário.

Comentário de Sebastian Kakazu

Através do relato "Lamentável Rompimento", o autor Jose Yoshida Sherikawa narra de forma muito clara as vicissitudes de uma irmandade gerada pela imigração, trabalho e sacrifício – a qual infelizmente chegou ao fim devido a diferentes pontos de vista sobre a posição do Japão na Segunda Guerra Mundial. Esta história possivelmente representa muitas outras histórias não contadas sobre tristes rompimentos ocasionados pela guerra. Se a guerra não tivesse acontecido, será que essas amizades teriam continuado e se aprofundado? Essa é uma pergunta para a qual não há resposta, mas eu gostaria de acreditar que sim. Este relato nos convida a refletir sobre como podemos perder amizades valiosas por causa de eventos conjunturais fora do nosso controle. Um tema pertinente aos nossos tempos dado o panorama mundial, e que me fez pensar se depois de todos esses anos aprendemos realmente alguma coisa.

 

© 2021 José Yoshida Sherikawa

Sobre esta série

O tema da 10ª edição das Crônicas NikkeisGerações Nikkeis: Conectando Famílias e Comunidades—abrange as relações intergeracionais nas comunidades nikkeis em todo o mundo, tendo como foco especial as emergentes gerações mais jovens de nikkeis e o tipo de conexão que eles têm (ou não têm) com as suas raízes e as gerações mais velhas. 

O Descubra Nikkei aceitou histórias relacionadas ao Gerações Nikkeis de maio a setembro de 2021; a votação foi encerrada em 8 de novembro. Recebemos 31 histórias (21 em inglês, 2 em japonês, 3 em espanhol e 7 em português) da Austrália, Brasil, Canadá, Estados Unidos, Japão, Nova Zelândia e Peru. Algumas foram enviadas em múltiplos idiomas.

Solicitamos ao nosso Comitê Editorial para escolher as suas histórias favoritas. Nossa comunidade Nima-kai também votou nas que gostaram. Aqui estão as favoritas selecionadas pelo comitê editorial e pela Nima-kai! (*Estamos em processo de tradução das histórias selecionadas.)

A Favorita do Comitê Editorial

Escolha do Nima-kai:

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About the Author

José Yoshida Sherikawa nasceu em 1935, em Cañete, no Peru. Foi vice-presidente da Asociación Estadio La Unión (AELU) em duas ocasiões, como também membro do grupo que organizou o Primeiro Simpósio Nisei Peru em 1979. Além disso, ele foi membro fundador da Associação Pan-Americana Nikkei, palestrante no Simpósio e na Primeira Convenção Pan-Americana Nisei México, e convidado no Programa de Líderes Nikkeis do Ministério das Relações Exteriores do Japão.

Atualizado em setembro de 2021

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