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O sabor da terra natal que atravessa mares – comida nativa se adapta à nova terra junto com os imigrantes

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O salame tipo italiano que os italianos não comem

“A nossa Mortadela Bologna, os italianos de lá não comem”. Foram estas as palavras de Mário Benedetti, um ítalo-brasileiro extremamente dedicado, na entrevista que me deu em 2010 e que me causaram uma forte impressão.

Mário Benedetti, presidente da Ceratti

Refiro-me a ele como “extremamente dedicado”, porque Mário é da terceira geração, mas faz questão de falar italiano em família e até os mais jovens da quarta geração são fluentes, além de terem dupla cidadania. Isto talvez deva ter relação com o fato de a Ceratti, a indústria de frios e embutidos que ele administra, ser a maior do gênero e que preserva “o tradicional sabor da Itália”.

Giovanni Ceratti, avô de Mário, deixou a Itália em 1921, quando o país estava devastado em consequência da I Guerra Mundial e assistia à subida do fascismo, e chegou ao novo continente acalentando sonhos.

Houve um desenho animado - “Dos Apeninos aos Andes” - que se tornou clássico, sobre Marco, um menino de 13 anos que parte à procura da mãe que foi trabalhar na Argentina e nunca mais deu notícias. Dizem que a cidade onde há maior número de italianos e descendentes é Nova York, seguida de Buenos Aires e, em terceiro lugar está São Paulo. E a época em que o avô de Mário Benedetti chegou aqui era quase igual à época do menino Marco da história.

Casando-se com Gina em 1929, Giovanni abriu um pequeno açougue para atender à clientela de conterrâneos e este foi o início da empresa. Naquela época, uma em cada seis pessoas da cidade de São Paulo tinha vindo da Itália, portanto, sua intenção era levar o sabor da terra de origem a seus clientes. Giovanni era oriundo de Castelmassa, cidade ao norte da Itália e vizinha a Bolonha (a capital da gastronomia) e terra da mortadela.

Processo de produção da mortadela Ceratti

Mas Giovanni teve de fazer algumas adaptações: na Itália a carne é 100% de porco, mas como em São Paulo a carne bovina era mais barata e a preferida, usou 50% carne de porco e 50% carne bovina. E para agradar o paladar brasileiro utilizou alho, sal e pimenta-do-reino em grande quantidade. O resultado foi um sucesso e a escala de produção foi aumentando. Segundo José Janésio de Lima, que trabalha há 37 anos (à época da entrevista) na empresa e conhece tudo, foi esse sabor “forte” demais que afastou os italianos. Portanto, acabou se tornando um salame bolonhês à moda brasileira que os italianos não comem.

Mário Benedetti faz uma comparação assim: “A essência da Itália é a gastronomia, o entretenimento e as artes e a característica do Brasil é ter uma cultura mista. Daí eu ter introduzido o pensamento japonês”, enfatizando novamente algo de que fez uso.

De certo modo, ele deve ter falado da culinária brasileira. Juntamente com os imigrantes, os sabores também imigram.      

O “soba” trazido pelos imigrantes de Okinawa

Uma culinária trazida pelos imigrantes e que se adaptou e se espalhou para todo o Brasil é a esfiha, espécie de minipizza com carne bovina moída por cima e assada no forno, trazida pelos imigrantes árabes. Faz parte integrante do cardápio de refeições rápidas, mas sua origem está nos povos das regiões desérticas que usavam carne de carneiro.

Igualmente, na culinária japonesa existe o exemplo do “soba de Okinawa” que, em 2006 foi incluído nos bens culturais da cidade de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, onde há concentração de pessoas de Okinawa e seus descendentes.

Originariamente era um prato servido entre os feirantes de Okinawa, mas como na feira trabalhavam brasileiros, eles se serviam protegidos por uma cortina por receio de serem vistos comendo de pauzinhos e fazendo barulho ao sorver o macarrão, como é costume entre os japoneses.

Ora, vendo isso, os brasileiros acharam que deveria ser algo delicioso para os japoneses comerem às escondidas e começaram a pedir um após outro. E, antes que se dessem conta, começaram a surgir as “sobarias”, barracas que servem soba para as pessoas em geral. É uma palavra inventada no Brasil e que não existe em Portugal.

Barraca de comida japonesa no Bairro Oriental da Liberdade, na Capital de São Paulo   

Somente no mercado central do estado existem 28 lojas uma do lado da outra, formando uma vista espetacular. Em 2007 surgiram na cidade de São Paulo, onde no cardápio consta que é “comida de Campo Grande”, não cita que é japonesa.

“Okinawa Soba” com bastante carne bovina, prato principal do cardápio de sobaria inaugurada na Capital de São Paulo  

Nesse processo de adaptação houve uma mudança do sabor e do recheio. O “soba de Okinawa” original tem um leve caldo de katsuo e em cima do macarrão vai uma carne de porco em porção mínima.

Ao passo que no Brasil o caldo é feito de osso de porco e em cima vai uma porção generosa de carne bovina cozida. Como guarnição, há lugares caros em que o cliente pode escolher que região da carne bovina vai querer.

No dia 14 de agosto, a cidade de Campo Grande comemorou o centenário da imigração de Okinawa que contou com a presença de um grupo de celebração vindo de lá. Um dos integrantes experimentou o “soba de Okinawa” e achou bem diferente do original. A maioria deu indiretas dizendo que não tem nada a ver com o prato de Okinawa, que o paladar é diferente, enfim, que não é saboroso.

“Temakeria”, restaurante de comida nikkei que não existe no Japão

Do mesmo modo, está em alta no Brasil uma “comida japonesa” que não existe no Japão. Por exemplo: lugares especializados em temaki, as chamadas “Temakerias” estão aumentando e pode-se dizer que o temaki já é outra comida nikkei.

Há diversos tipos de temaki, mas a maioria tem aspecto pesado. O temaki do Japão é geralmente leve, mas o daqui tem alto teor calórico e mais parece junk food, “besteira”.

No centro de Vila Olímpia, na Capital, existe certa “temakeria” que tem em seu cardápio o “Nachomaki”, que consiste de uma posta de salmão, nachos (snack feito de farinha de milho com molho picante), temperado com tabasco, sendo algo que está na categoria “comida japonesa”, mas que a criatividade brasileira misturou com comida mexicana, dando-lhe um caráter multinacional.

Também tem “Macadamia Maki” que é posta de salmão, macadâmia, maionese e gergelim e “Camarão Tailandês” que tem camarão grelhado, molho agridoce, pimenta-do-reino, óleo de gergelim, Aji-no-moto e amendoim.

Custa por volta de 15 reais, portanto, não é barato. É o mesmo preço de uma refeição em restaurante popular. Mesmo assim é bastante pedido, sendo uma comida nikkei apreciada pelos brasileiros.

Página do O Estado de São Paulo de 11 de agosto de 2011. Cardápio de postos de gasolina e padarias têm sushi, com predominância do temaki.  

O boom da comida japonesa

Até os anos 1970, a comida japonesa estava restrita à comunidade nipo-brasileira com característica de ser uma comida típica. Mas com a propagação da comida japonesa nos Estados Unidos, a partir dos anos 1980, os jovens ávidos de novidades e uma parte dos diletantes da cultura japonesa começaram a frequentar os restaurantes japoneses meio por curiosidade e pouco antes e depois de 1990 houve um avanço repentino.

Como no Brasil não era costume comer peixe cru, os primeiros brasileiros que provaram o sashimi e sushi estavam temerosos. E, graças ao boom da comida japonesa, os restaurantes japoneses que antes havia somente no Bairro Oriental da Liberdade espalharam-se pela zona sul, nas movimentadas ruas comerciais e bairros de classe média alta. Hoje em dia existem 600 restaurantes que servem sushi, sashimi e tempura somente na cidade de São Paulo.

Junto com o boom da comida japonesa aumentou o número de brasileiros que usam hashi (par de pauzinhos para levar a comida à boca). Cerca de dez anos atrás, andando pelo Bairro Oriental, fiquei surpreso ao ver um morador de rua comendo yakisoba usando hashi. Acho que é muito raro ver um morador de rua num país de cultura ocidental comendo yakisoba com hashi.

Bairro Oriental com seus torii e lanternas típicas. Foi onde começou o boom da comida japonesa.  

Globalização dos sabores da terra natal devido aos imigrantes

Voltando à história da mortadela Ceratti, fora do Brasil há apenas um lugar em que ela é produzida. E quando eu soube que esse lugar fica na cidade de Hamamatsu, na Província de Shizuoka fiquei surpreso. A produção começou em 2001, importando da matriz o extrato que é um segredo industrial. São dois os motivos da escolha de Hamamatsu dentre as cidades do mundo.

Mário Benedetti é um grande admirador do Japão. Desde 1992, esteve no país oito vezes aprendendo sobre gestão da qualidade; em 2004 inaugurou a recém-criada e supermoderna indústria de alimentos que recebeu o nome japonês “Omamori”. Dizendo que “por fora é brasileira, mas ao abrir a porta é ao estilo japonês”, Mário Benedetti visa o modelo japonês.

Entrada da moderna fábrica da Ceratti com o nome “Omamori”  

O segundo motivo é estar localizada na cidade onde moram os decasséguis brasileiros que tanto apreciam a mortadela Ceratti.

O “sabor da terra natal” que atravessou o Atlântico e se espalhou em terras brasileiras, desta vez atravessou o Pacífico passando às mãos dos nikkeis o controle. E se, não somente os decasséguis, os japoneses locais também aderirem, com certeza, darão um toque de sabor japonês.

Desse modo, o “sabor da terra natal” que estava restrito a determinada região, agora está se deslocando pelo mundo graças aos imigrantes. Aos sabores trazidos pelos imigrantes foram acrescentados os sabores da “comida global”.

Rótulo da mortadela produzida em Hamamatsu, Província de Shizuoka  

 

© 2014 Masayuki Fukasawa

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About the Author

Nasceu na cidade de Numazu, província de Shizuoka, no dia 22 de novembro de 1965. Veio pela primeira vez ao Brasil em 1992 e estagiou no Jornal Paulista. Em 1995, voltou uma vez ao Japão e trabalhou junto com brasileiros numa fábrica em Oizumi, província de Gunma. Essa experiência resultou no livro “Parallel World”, detentor do Prêmio de melhor livro não ficção no Concurso Literário da Editora Ushio, em 1999. No mesmo ano, regressou ao Brasil. A partir de 2001, ele trabalhou na Nikkey Shimbun e tornou-se editor-chefe em 2004. É editor-chefe do Diário Brasil Nippou desde 2022.

Atualizado em janeiro de 2022

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