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Sabor de Mãe

D. Aiko e suas bisnetas, comemorando seus 101 anos

Estimulado pelo instigante tema proposto pela editoria deste jornal – Comida Nikkei x Comida Japonesa – surgiu à mente a lembrança do belo filme de Naomi Kawase Sabor da Vida. Cheio de beleza e sutileza, é um daqueles filmes para saborear com os olhos e provocar nossa mente para as pequenas e belas coisas da vida. O enredo tem como pano de fundo a receita secreta de uma tradicional guloseima, o dorayaki, muito apreciado pelos japoneses. Com a devida licença da diretora, pensei em Sabor de Mãe para abrir o meu texto, pelas seguintes razões:

Pode-se dizer que uma das tradições mais valiosas e gostosas que preservamos até hoje em nossa família é poder juntar na casa da mamãe ou da vovó Aiko, como ela é conhecida carinhosamente, os filhos, noras, netos e bisnetas. Ou seja, a família em peso, que só não chega a 100% devido à ausência das netas Clarissa e Jennifer que moram no exterior. Encontros esses geralmente realizados nas datas festivas Dia das Mães, dos Pais, Natal, aniversários ou em qualquer momento, sem uma justificativa formal, quando a saudade pela vovó bater no coração de todos. Ou vice-versa, quando a vovó é quem reclama da ausência dos familiares – geralmente  são as bisnetas as mais lembradas (rsrsrs).

Além do sentimento de saudade que sentimos pela vovó, existiriam outras razões? Por ser a matriarca da família? Ou seriam a doçura, o carinho e o respeito que a sua figura deixa transparecer?

Creio que todas as razões apontadas teriam o seu peso!  Mas não podemos deixar de reconhecer que o pecado da gula fala alto como justificativa, diante da imagem da mesa farta, com a deliciosa comida aguardando os comensais nessas ocasiões. Motivação maior não poderia existir para a presença maciça do pessoal. Tão importante e saboroso o costume que acabou contribuindo indubitavelmente para que a família se mantivesse tão próxima e unida até os dias de hoje. Essa é a força da culinária da vovó Aiko! Todos, inclusive das gerações mais jovens, foram influenciados e conquistados pelo sabor da comida da vovó Aiko.

Cada encontro era uma verdadeira festa, na qual conviviam sem cerimônia pratos tradicionais japoneses e a comida com jeitinho brasileiro. Uma mistura aparentemente estranha, onde, graças às mãos habilidosas da vovó Aiko, todo prato tinha um sabor próprio e um quê especial, que fazia de qualquer um o protagonista.

Difícil não lembrar e não sentir saudades dos bolinhos de bacalhau, do pastelzinho de carne ou queijo, cuja massa tinha um segredo que dava maciez e crocância ao mesmo tempo. Quem experimentava, queria mais! O imperdível pernil assado, costela de porco, camarão empanado, lasanha, espaguete à bolonhesa, risoles de carne, feijoada, filé à milanesa, entre outros. Tudo integrado de forma harmoniosa e pacificamente com o nishime, tsukemono, sushi, sashimi, tempura, yakisoba, gyoza, yakizakana, misoshiru, hijiki gohan, soba, udon, oshiruko, chawan mushi, ohagi. E tantos outros tradicionais pratos da culinária japonesa que, mesmo com precariedade de ingredientes, saíam das mãos hábeis da cozinheira em poucos minutos, com uma facilidade e sabor admiráveis.

Dizem que a comida da mãe satisfaz o estômago e a alma. A comida tem esse poder: ajuda a criar laços com o grupo, conectar as pessoas, de nos reconectar com aqueles que amamos e sentimos saudades, de trazer de volta memórias, cheiros, sabores...

Hoje, a vovó Aiko ainda cozinha, mas muito pouco.  Afinal, ela completou 101 anos em janeiro último. Cento e um anos! Embora ela esteja lúcida, disposta e mantendo a mesma rotina de anos a fio, procuramos aliviar os seus afazeres domésticos, deixando-a cuidar apenas do menu diário e da orientação dos serviços de cozinha, que estão sob a responsabilidade da filha Edith.

Ainda assim, centenária, o carinho e generosidade ainda fazem parte do jeito de ser da vovó Aiko. Como quando recebeu a neta que mora na Suíça e que veio visitá-la no ano passado. Fez questão de preparar tudo que a netinha apreciava. Não esqueceu a lasanha de carne, o prato predileto dela, feita com a massa caseira preparada um día antes com capricho; do arroz hijiki, das costelinhas de porco assadas, dos camarões empanados.

Assim é a vovó Aiko, que continua fechando os ágapes familiares com o seu delicioso cafezinho de coador, imperdível.  E, em algumas ocasiões, como grand finale oferece o saboroso e digestivo umeshu, o licor de ume que ela manda servir com uma pedrinha de gelo, para acentuar o gosto. Licor, diga-se de passagem, feito por ela mesma, uma vez ao ano, com um capricho de artesã, seguindo um velho livro de receitas editado no Japão.

D. Aiko, saboreando um delicioso "tempurá teishoku"!

Aiko chegou ao Brasil em 1927, quando tinha apenas 6 anos de idade, na companhia dos pais e irmãos. Como todo imigrante japonês daquela época, enfrentou inúmeras adversidades e dificuldades ao longo da vida. Teve que trabalhar na roça quando menina, cuidar do irmão caçula, perdeu o pai ainda moça, recém-casada e com um filho de colo. Ainda no Interior de SP, teve que ajudar o marido no comércio, bar e sorveteria, trabalhando quase 12 horas diárias e sem folga. E quando a família teve que se mudar para a cidade grande, São Paulo, ficou com os cuidados da casa, inclusive cozinhando para um batalhão de 10 a 12 pessoas e, nas horas de folga, dedicava-se a trabalhos de costura para ajudar no orçamento doméstico. Nada a abateu e nada foi empecilho para que chegasse à idade centenária com uma disposição e lucidez de causar admiração.
Ela tem afirmado inúmeras vezes que o seu maior orgulho foi ter conseguido fazer com que seus cinco filhos se graduassem em universidades de primeira linha, cada qual custeando seus próprios estudos, sem qualquer ajuda paterna. Exemplo que se estendeu aos netos, todos formados e bem sucedidos profissionalmente.

Outro grande orgulho, segundo ela, foi ter conseguido preservar os laços e a unidade da família, como mostram os animados e frequentes almoços, com comparecimento total. "Missão cumprida, acho que fiz a minha parte”, diz ela com um sorriso maroto.

Há poucos dias, após o arrefecimento da epidemia da Covid-19, conseguiu convencer que os filhos a levassem para um "tour sentimental", uma viagem de mais de 700 km. pelo interior de SP, para uma visita aos parentes mais próximos e, particularmente, à sepultura de seus pais na pequena cidade de Bastos, e a de seus irmãos em Presidente Prudente e Álvares Machado.

Nessa ocasião, ela confessou, emocionada, que talvez tenha sido a sua última visita. Gostaríamos e temos razões para pensar o contrário.

O sabor da vida e da comida da vovó Aiko merecem ser preservados. É a missão para as gerações seguintes.
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© 2022 Katsuo Higuchi

Brasil comida famílias
About the Author

Natural de Tupã – SP, nissei, formado em Direito com Especialização em Relações Trabalhistas. Durante 50 anos atuou como Executivo e Empresário na área de Recursos Humanos. Consultor Empresarial, é  também Colunista do Jornal Nippo Brasil.

Atualizado em junho de 2017

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