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Telma Shiraishi oferece sabor próprio à culinária japonesa com ingredientes brasileiros

A chef Telma Shiraishi chegou a cursar Medicina e Publicidade, e a trabalhar com moda e eventos (foto: Rafael Salvador)

Nascida em São Paulo (SP) e com raízes nas províncias japonesas de Wakayama (avô paterno) e de Iwate (avô materno), a chef Telma Shiraishi, de 52 anos, fez a pré-escola em escola japonesa e o primário em escola estadual.

Aos 10 anos, mudou-se com os pais e as duas irmãs mais novas para o interior. Seu pai, que era gerente do antigo Banco do Estado – a agência ficava no Largo da Batata, em Pinheiros, perto da Cooperativa de Cotia e do Mercado de Pinheiros –, após ter sofrido alguns assaltos, cansou-se da violência na capital. Por isso, ele decidiu que a família iria morar em Paraíbuna (SP), a 123 km de São Paulo, “uma cidade super pequenininha, bem no alto da serra, no Vale do Paraíba”, perto de São José dos Campos (SP), onde Telma fez o colegial.

Dos 10 aos 17 anos, apesar da curiosidade, e de cultivar livros e revistas, não teve contato com a comunidade japonesa, porque lá não havia uma. Retomou essa relação com descendentes quando retornou à capital para cursar a faculdade de Medicina na USP – Universidade de São Paulo. “É incrível como as pessoas se juntam por afinidades”, comenta a chef sobre seu grupo de amigos que se autodenominavam “japanela”. Nesta época, começou a fazer aulas de japonês e, assim, passou a se interessar um pouco mais pela cultura japonesa.


O hobby que se tornou profissão

“Nunca imaginei que fosse trabalhar com culinária japonesa. Depois de desistir da faculdade de Medicina, passei por Publicidade, trabalhei com moda e eventos, mas nada relacionado à culinária japonesa”, revela.

Em meio a criações de roupas, desfiles e coletivas de imprensa, deu-se conta de gostava de receber as pessoas, além de cuidar da comida e da bebida. “Em casa, a gente sempre foi muito de cozinhar, de receber, de gostar de comer. Ia bastante com meu pai à feira, aos supermercados, testava sabores novos”.

Mais tarde, quando estava com 26, 27 anos, “surgiu a oportunidade de abrir um restaurante japonês [o Aizomê] e o que era um hobby, cozinhar em casa e nos eventos, se tornou uma profissão”. Como não havia cursos ou escolas de culinária japonesa, Telma foi muito autodidata, pesquisando, cozinhando, aprendendo e crescendo junto com o restaurante.

A oportunidade de abrir o Aizomê transformou o hobby de cozinhar em profissão (foto: Rafael Salvador)


Estudos e busca pela identidade

“Quando comecei o restaurante que percebi que não era só você entender receita, aprender técnicas para replicar os pratos”. Era preciso ir mais a fundo. “Foi quando mergulhei de fato na cultura japonesa e tive de estudar história, geografia, cultura, tradição, filosofia, até a parte da espiritualidade”, conta. “Está tudo intrincado: o hábito de comer e o de cozinhar, como você encara o alimento, a questão da gratidão e do respeito”. A chef do Aizomê explica que incorporou todos esses fatores na culinária como temperos especiais da cultura e, desta maneira, seu estilo foi tomando forma.

Em uma das fases desse mergulho, mais “purista”, na busca por suas raízes, Telma se perguntava como iria conseguir fazer algo 100% japonês no restaurante. Até que compreendeu o pensamento dos japoneses de valorizar produtos locais e sazonais.

Combinar peixe da estação, bacalhau, abobrinha e molho yuzu é exemplo de como valorizar produtos locais e sazonais (foto: Rafael Salvador)

“Por mais que eu tentasse ser japonesa, não sou, sou brasileira, neta de imigrantes”. A ideia era honrar esse legado, pois há muita memória afetiva, além da saudade de certos sabores, certas receitas e preparações. “Busquei contar a minha história, a história dos imigrantes, através dos pratos, das receitas, das várias adaptações que eles tiveram de fazer” em virtude da diferença entre estações do ano, climas, ingredientes, etc. “Foi essa tradução que resultou na minha culinária, que é, sim, nipo-brasileira, mas com respeito pelos meus antepassados, pelas minhas referências, que são muito fortes, e por tudo aquilo que eles trouxeram e contribuíram para a nossa cultura, para a sociedade brasileira e para o desenvolvimento do Brasil”, afirma a sansei.

Telma Shiraishi busca contar a história dos imigrantes através dos pratos (foto: Rafael Salvador)

Influências das avós

Telma observava a avó materna lendo ou escrevendo e talvez assim tenha criado um olhar japonês sobre as coisas. “A casa dela estava sempre cheia de livros. Ela mantinha um diário, escrevia versos de haiku”, relembra.

Já a avó paterna vivia na cozinha. Recorda-se de uma vez quando a avó tinha conseguido folha de nori para preparar futomaki para a festa de família. “Às vezes não era fácil conseguir os ingredientes naquela época”, frisa. “Senão, ela enrolava em folha de acelga ou de mostarda”, completa.

Nas reuniões familiares, predominavam as receitas caseiras, entre sushis, futomaki e narizushi, nimono – os cozidos japoneses – que “é sabor de batian”. “Tanto que hoje gosto bastante de fazer nimono, é uma terapia ficar torneando os legumes”.

Desafios

A jornada de autoconhecimento gerou certos conflitos internos. “Porque seus olhos e seus traços não te identificam como brasileiro. Por outro lado, quando fui para o Japão, as pessoas sabiam que não era japonesa. Existe, então, estranhamento, não importa onde você esteja”, aponta a neta de imigrantes. 

Enquanto isso, no âmbito profissional, Telma revela que enfrentou dificuldades e preconceito por não saber falar fluentemente a língua japonesa. “Foi só muito recentemente que isso mudou. Os japoneses que estão no Brasil não esperam que você fale japonês e apreciam todo o esforço que você faz pela cultura, no meu caso especialmente para a culinária”. Em outras palavras, o esforço “de ajudar a divulgar tudo o que é bom e de fazer um trabalho diferenciado no restaurante, conseguir traduzir esses conceitos básicos, a essência, para o nosso contexto no Brasil”.

Tradição e popularização da culinária japonesa no Brasil 

Os brasileiros habituaram-se a pensar a culinária japonesa baseada apenas em peixe cru, salmão com cream cheese, jalapeño, maionese, isto é, ingredientes que não são nem brasileiros nem japoneses. Isso é resultado da popularização realizada pelo modelo de cozinha japonesa nos Estados Unidos.

O kaisen ju é um prato típico com peixe cru que contrasta com o modelo americano de culinária japonesa com ‘cream cheese’ (foto: Rafael Salvador)

“A popularização foi positiva, com certeza, porque ajudou a vencer a barreira, o preconceito inicial. As pessoas provam e se acostumam a comer peixe cru, missô, shoyu, wasabi, alga e outros sabores diferentes”, comenta.

Por outro lado, a culinária que veio com os imigrantes japoneses ficou esquecida. Quando a chef abriu o Aizomê, queria fazer algo diferente, mostrar a comida japonesa pela perspectiva de sua história, “de uma descendente de imigrantes japoneses”.

Até hoje seu trabalho centra-se em cobrir todo o restante da culinária típica e outros tipos de preparação. “Na verdade, tem muito que explorar. Gosto de falar que nem comecei a arranhar a superfície de todas as possibilidades que o Japão oferece em termos de sabores. Cada região e cada estação tem suas particularidades”, acrescenta.

Choque de costumes e hábitos

Aqui, nota-se o uso exagerado do shoyu. “Os brasileiros gostam de tudo muito salgado ou muito doce. E, se você coloca muito shoyu em tudo, você nem sente o sabor da comida”.

Há ainda uma diferença entre o Brasil e o Japão. “No Brasil, os restaurantes japoneses possuem um cardápio bastante extenso, servem de tudo: massa, sushi, sashimi, pratos quentes, fritura. E no Japão o que se tem são casas especializadas [de sushi, ramen, udon, soba e izakayas – botecos japoneses]”.

Um dos maiores preconceitos existentes é em relação ao bentô. “As pessoas estranham que não é quente, daí têm a conotação pejorativa da boia-fria, da marmita do trabalhador pobre – ele tem de comer fria, onde dá”. E continua: “é tudo uma questão do ponto de vista cultural. É melhor uma refeição que você mesmo preparou, do seu gosto, do que comer algo que você não sabe como foi feito e às vezes não é tão saudável”.

Crescimento e reconhecimento

Na visão de Telma, o restaurante acompanhou sua busca, começou com uma forte raiz no Japão. Porém, o reconhecimento de seu trabalho não foi fácil – por ser mulher e não ser japonesa. Precisou provar que tinha o entendimento, o respeito, a seriedade, o comprometimento e que dominava as técnicas, as receitas, os conceitos, os princípios. “Mais ou menos na metade do caminho, comecei a ter maior segurança e a me aventurar, colocar a minha personalidade”, conta. 

Em 2018, recebeu do Consulado Geral do Japão em São Paulo o Diploma de Honra ao Mérito pela Difusão da Culinária Japonesa. “Os japoneses apreciam quando a gente consegue atingir o ponto de por uma marca no que faz”. Quando conseguiu vencer essas barreiras, foi então que vieram os eventos, tanto no Japão quanto no Brasil. “Abri caminhos para outras mulheres, não só na culinária japonesa, mas na cozinha em geral”, destaca a chef.

Sem dúvida, é importante mostrar que existe uma expressiva comunidade de descendentes no Brasil e valorizar, contar mais sua história, que é muito bonita. “A culinária é um dos modos mais gostosos – literalmente – e mais democráticos de envolver pessoas, contar histórias e encontrar pontos em comum entre as pessoas, os grupos, as tribos e as gerações”.

E foi pela história e pela cultura do bentô que o Aizomê começou seu trabalho dentro do espaço cultural da Japan House, com uma pop-up store (loja física temporária). “Pensei logo na ideia do bentô, porque até então os únicos que existiam eram aqueles da Liberdade, nas lojinhas, e no Japão é bem forte a cultura do bentô. É tão gostoso, tão equilibrado, bonito, saudável”, explica. Um mês estendeu-se para quase seis e, logo em seguida, veio o convite para estabelecer um restaurante fixo – inclusive, já completou três anos e meio de funcionamento.

O restaurante Aizomê conta também com uma unidade dentro do espaço cultural da Japan House (foto: Rafael Salvador)

Desejos e planos futuros 

O restaurante se firmou como um ponto de referência de diversidade de receitas e, ao mesmo tempo, tem a função de “mostrar que no Japão há muita riqueza também, possibilidades que pessoas ainda não conhecem”.

A renomada chef ministra palestras e workshops, mas seu sonho seria abrir uma escola. Sua vontade é de continuar esse trabalho de traduzir o que é a culinária japonesa, já que não há escolas de culinária japonesa. Além disso, deseja tornar mais acessível para todo o mundo, porque cada vez mais as pessoas têm interesse.

É também para compensar a dificuldade que sentiu quando começou no ramo. “Não tínhamos internet, escola, nem material traduzido em português. E, como não tenho fluência na língua, tive de pesquisar em inglês, por exemplo”, ressalta Telma. “Tem muito a ser feito para democratizar esse acesso à informação e à formação dentro da culinária e da gastronomia japonesa. E por isso tenho um título do governo japonês de embaixadora para difusão de culinária japonesa [Embaixadora da Boa Vontade para Difusão da Culinária Japonesa]”, finaliza.

A chef baseia-se em diversos aspectos da cultura japonesa, como história e filosofia, além de valorizar produtos locais e sazonais.

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Misturando Culturas Culinárias: Uma Conversa com Chefs Nikkeis de Los Angeles, São Paulo e Lima

Sábado, 3 de dezembro de 2022 • 20h (horário de Brasília)

Acompáñanos para una conversación con destacados chefs nikkeis: Niki Nakayama de n/naka (Los Ángeles, California, Estados Unidos), Telma Shiraishi del Restaurante Aizomê (São Paulo, Brasil) y Roger Arakaki de Sushi Ito (Lima, Perú). 

Inscreva-se agora mesmo!: 5dn.org/chefs-nikkeis-pt  
(Aceitaremos um número limitado de participantes.)

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© 2022 Tatiana Maebuchi

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About the Author

Nascida na cidade de São Paulo, é brasileira descendente de japoneses de terceira geração por parte de mãe e de quarta geração por parte de pai. É jornalista formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e blogueira de viagens. Trabalhou em redação de revistas, sites e assessoria de imprensa. Fez parte da equipe de Comunicação da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social (Bunkyo), contribuindo para a divulgação da cultura japonesa.

Atualizado em julho de 2015

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