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Caminho de volta

Recentemente, dona Yasuko se viu em uma situação em que tinha que provar que ela era... ela mesma. Possuindo parte dos documentos com o sobrenome Fujii e parte dos documentos com o sobrenome Huzii, parece simples provar que um foi romanizado no sistema Hepburn e outro foi romanizado no sistema Kunrei, mas o documento que o consulado emitiu, sem assinaturas ou carimbos, porque atesta fato notório, não foi aceito pela burocracia do Estado de São Paulo, acostumada a uma miríade de credenciais apenas para repetir algo que está na Wikipédia.

A filha de dona Yasuko, Fumiko, me perguntou como resolver o problema e, apesar de ser advogada, só pude lhe responder que teríamos que contratar um tradutor oficial e torcer para que a explicação convencesse quem quer que pegasse o caso agora. Assim, minha avó, Yasuko, e minha tia não conseguiam entender qual era a dificuldade e eu e meu irmão, também da área jurídica, não conseguíamos explicar a contento, mesmo sendo ligeiramente mais versados na burocracia brasileira. Não deixa de ser um choque cultural.

Dona Yasuko acorda cedo, cuida de suas plantas, prepara o gohan e controla de forma minuciosa as contas que tem a pagar com sua pensão, mas, aos 95 anos, sai pouco e está começando a esquecer detalhes de sua própria história. Dona Yasuko chegou ao Brasil após a Segunda Grande Guerra, aqui se casou com Shigeharu Taguchi e aqui criou seus dois filhos, minha tia e meu pai.

O jovem Shigeharu veio ao Brasil, como muitos jovens japoneses, para trabalhar a lavoura, mas possuía um talento especial que permitiu que sua história mudasse drasticamente: era excelente arremessador e construiu uma boa carreira no baseball, no Brasil, quem diria? O jovem Shigeharu pôde assim fazer um pequeno pé de meia, que permitiu a compra de um caminhão para o transporte de hortaliças e verduras, vindas diretamente dos pequenos produtores rurais japoneses para a cidade de São Paulo. O primeiro caminhão se tornou uma pequena frota, a pequena frota se transmutou em uma empresa de seguros até bastante lucrativa...

Em um período parecido, o jovem Carlos José estudava na Paraíba, um menino também humilde, que não podia estudar em grandes colégios, que se divertia aprendendo acrobacias com artistas em pequenos circos que visitavam sua cidade (sabia até dar saltos mortais, apesar de não tê-los feito por muitos anos antes de termos nascido). Esse menino passava seus dias estudando na biblioteca pública, contando com memória primorosa e talento poético, esse rapaz estudava, por conta própria. Tornou-se o orgulho da família: foi cadete e, depois, oficial do Exército. Esse era o pai de minha mãe.

E é desses sonhos que nasce nossa pequenina e feliz família, já Vidal de Almeida Taguchi, já juntando duas famílias, com histórias centenárias, originárias de lados opostos do mundo.

Gostamos de dizer que nossa mãe é tão japonesa quanto nosso pai, não só pela crença inquebrantável no poder do esforço pessoal, mas principalmente por sua resiliência e perseverança. Ela que se tornou professora federal mesmo tendo já uma criança para cuidar (eu mesma) e foi pai e mãe tantas vezes quando meu pai teve de cumprir seu dever junto ao trabalho. E meu pai que, enfrentando a teimosa resistência do velho Shigeharu, abandonou o curso de Engenharia na USP e as entrevistas de omiai, para perseguir seu próprio sonho... entrar no Exército. A família nunca foi dada a aceitar correr sobre trilhos postos por outros.   

Meu pai se afastou da comunidade Nikkei por essas circunstâncias da vida, por ser oficial, dificilmente passava mais do que três anos na mesma cidade. Eu e meu irmão a redescobrimos por acaso, como muitos jovens também a descobrem: a partir das animações japonesas.

De muitas formas tentamos nos reconectar com esse passado, sabendo que ele faz parte de nós, mas não é tudo que nós somos, olhamos para ele como um estranho familiar. Como a fé cristã foi dada pela família de Shunsaku Endo, que nasceu na cultura japonesa, a nós ocorre o contrário, nascemos no Brasil e na fé cristã e a cultura japonesa nos foi dada por nosso pai, mas como um presente curioso.

A melhor forma até agora, além, é claro, das animações que ainda acompanhamos com fervor, tem sido a língua. Há quatro anos, todos os dias, nos deparamos com dificuldades crescentes no aprendizado do Nihongo, e ficamos assombrados com os obstáculos à frente, mas muito mais surpresos com o gigantesco progresso que nos trouxe a perseverança de “brigar” com nossas lições todos os dias (e testar a paciência de nossa sensei, fica desde já meu enorme agradecimento). A língua, mais do que qualquer outra manifestação cultural, forma o pensamento e o expressa, sendo uma fresta para tentar entendê-lo, os kanjis, as expressões particulares que trazem uma carga histórica, centenas de anos de um povo na expressão “dar um ryo para um gato”.

No nosso curso, o Kumon da Asa Norte, em Brasília, encontrei a irmã de minha querida professora de Sumie “brigando” com suas próprias lições. Ela comentou conosco que minha professora sempre foi habilidosa no idioma japonês (informação que minha professora negou de forma “niponicamente” humilde: quem saberia tudo de japonês seria esta irmã que estava no Kumon), mas ela, agora, havia entrado no curso por ter sido tomada pelo desejo de ler e traduzir os diários empoeirados de seus pais, encontrados em uma caixa num canto da casa.

Em minha primeira aula de Sumie, no Festival do Japão de Brasília, também uma moça comentava comigo que estava lá por ter encontrado um antigo conjunto de pincéis e tintas pertencentes a seu pai, além de alguns rascunhos amarelados. A comunidade se encontra e reencontra nestes Festivais a partir de lembranças e objetos empoeirados, tanto ou mais do que o sangue que nos corre nas veias, o que é provado pela quantidade crescente de jovens que não são nikkeis, mas desejam, o máximo possível, se inteirar dessa cultura. Não importa a arte marcial que se veja, todas terão mais jovens de outros backgrounds do que jovens Nikkeis. É uma comunidade cultural, mais do que genética, e que não para de crescer.

Somos fruto dos incontáveis guerreiros que vieram antes de nós, do coronel Pereira de Alagoas, dos Taguchi de Saitama, camponeses, fazendeiros, militares, professores, dezenas de pessoas cuja história deságua em nós, aqui, no Brasil. É muita responsabilidade.

É um legado de homens e mulheres, que fogem de perseguições religiosas, que fogem da fome, que fogem do desespero, e chegam a este país abençoado, em que a fúria da natureza se acalma, em que lindas hortaliças crescem de terrenos antes condenados, em que, no meio do cerrado e da seca que dura seis meses, famílias como os Watanabe produzem tofu fresco e delicioso, sempre disponível na mercearia japonesa a 20 minutos de nossa casa, tofu que minha avó comprava de um senhor seu vizinho que o fazia e vendia naquela rua, paralela à prestigiosa Avenida Japão em Mogi das Cruzes, essas pequenas facilidades que os pais da minha sensei de Sumie não puderam desfrutar. Ontem mesmo, para comparar as comodidades atuais encontrei em um shopping relativamente popular da cidade uma prateleira repleta de estatuetas de anime, sucessos de venda segundo o rapaz que me atendeu. 

Meu avô não veio para o Brasil para ficar, sonhava em voltar para o Japão. Mas hoje, setenta anos depois, minha avó ainda vive na rua transversal à Avenida Japão em Mogi das Cruzes, ligeiramente arrependida de não ter aprendido o idioma do país que a acolheu. Talvez o maior estímulo para que meu irmão, sempre gentil, queira aprender o japonês, seja o seu desejo de dar uma conexão humana para sua avozinha.

Esse texto é apenas fruto do meu desejo de participar dessa conexão entre nós, entre nossos futuros filhos e aqueles que dedicaram suas vidas pelas oportunidades que temos hoje.

Aos jovens, digo para que não se ressintam daqueles que perguntam sobre seus resultados escolares, como herdeiros de guerreiros que tantas vezes ergueram seu país das cinzas apenas “trincando os dentes” e recorrendo ao gaman, vocês são comparados a padrões altos postos pelos que vieram antes de nós. Nenhum deles desejou que isso se tornasse um fardo, apenas desejavam o melhor que pudessem dar exatamente a seus filhos e netos queridos. Nada que estivesse ao alcance da vontade humana era impossível, e é crendo nisso que eles fizeram o impossível.

Aos pais, peço para que se dediquem não apenas ao que nos une externamente, do idioma às artes marciais, todas essas manifestações culturais brotam da mesma fonte: os valores que carregamos, que herdamos do Japão, que são parte de quem nós somos, mas não o todo. Temos a base desses valores e nos resta construir algo nosso a partir deles, fazendo uma comunidade forte e unida, que contribua, acima de tudo, para a melhoria da sociedade da qual fazemos parte hoje.

 

© 2021 Stéphane Taguchi

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Sobre esta série

O tema da 10ª edição das Crônicas NikkeisGerações Nikkeis: Conectando Famílias e Comunidades—abrange as relações intergeracionais nas comunidades nikkeis em todo o mundo, tendo como foco especial as emergentes gerações mais jovens de nikkeis e o tipo de conexão que eles têm (ou não têm) com as suas raízes e as gerações mais velhas. 

O Descubra Nikkei aceitou histórias relacionadas ao Gerações Nikkeis de maio a setembro de 2021; a votação foi encerrada em 8 de novembro. Recebemos 31 histórias (21 em inglês, 2 em japonês, 3 em espanhol e 7 em português) da Austrália, Brasil, Canadá, Estados Unidos, Japão, Nova Zelândia e Peru. Algumas foram enviadas em múltiplos idiomas.

Solicitamos ao nosso Comitê Editorial para escolher as suas histórias favoritas. Nossa comunidade Nima-kai também votou nas que gostaram. Aqui estão as favoritas selecionadas pelo comitê editorial e pela Nima-kai! (*Estamos em processo de tradução das histórias selecionadas.)

A Favorita do Comitê Editorial

Escolha do Nima-kai:

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* Patrocinador de la comunidad:

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About the Author

Stéphane Taguchi é advogada formada na Universidade de Brasília com pós-graduação pela FESMPDFT. Está tentando aprender japonês com humildade. Sonha ser promotora de justiça.

Atualizado em outubro de 2021

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