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Legado

Acabei de completar setenta e oito anos. Não imaginava viver tanto tempo, mas a vida passou como um flash e o que me resta são lembranças. Muitas lembranças. Algumas boas, outras nem tanto.

Recordo-me com saudade da minha infância no sítio, onde meus pais tentavam sobreviver cuidando da lavoura de café. Vida difícil e penosa para um casal de imigrantes japoneses. Distante da terra natal, criavam seus filhos para fincar suas raízes neste país.

O Japão havia perdido a guerra e o sonho de um retorno triunfante fora enterrado precocemente. Enterrado um sonho, criou-se outro. Minha mãe que viera com a família aos treze anos de idade era uma pintora inata. Havia se destacado nos estudos e esperava tornar-se uma pessoa culta e bem-sucedida. A perspectiva de nova guerra fez o meu avô tomar o rumo do Brasil e fugir com a família. Estivera na Manchúria e nas Ilhas Sakalinas. Não queria enfrentar os horrores de um outro conflito. Minha mãe se frustrou, mas não reclamou. Como boa filha, obedeceu, calada, às determinações do pai e tornou-se uma lavradora. Calada, consentiu em se casar com o meu pai através do antigo sistema miai e formou uma família.

As safras de café não chegaram conforme o plano inicial. Uma geada impiedosa queimou as esperanças do casal e as dívidas cresceram. Minha mãe, no entanto, não abriu mão de seus objetivos. Quis que todos os cinco filhos estudassem e se graduassem. Para isso, desde muito cedo ensinou-nos o gosto pela leitura. Não sei como, mas sempre tivemos à mão uma porção de livros. Colocou-nos na escola e, quando as meninas atingiram a idade escolar, convenceu meu pai de que era hora de vender o sítio. Na cidade se tornaram comerciantes e aprenderam a duras penas o novo ofício. Vendas a fiado, calotes de clientes e crises econômicas afundaram a condição financeira da família.

Família Katsurayama, em Osvaldo Cruz (sp) Brasil em 1946

Cedo fui trabalhar numa agência bancária como contínuo. Queria fazer o curso colegial, mas tive que me contentar com o curso técnico de contabilidade. Meus amigos puderam seguir um caminho mais fácil. Mesmo contrariado, logo percebi que esse emprego me deu confiança para dias piores. O serviço, embora humilde, foi uma verdadeira escola para mim. Além disso, os parcos trocados serviram para amenizar a situação da minha família.

Com a base educacional que tivemos, pouco a pouco, todos os filhos conseguiram bons empregos, através de concursos públicos ou por meio de empregos privados. Na década dos anos sessenta e setenta, o país abriu muitas oportunidades para jovens com boa base escolar. Nós nos preparamos para os desafios que se apresentaram e pudemos subir na escala social. Resgatamos nossos pais da pobreza.

O tempo passou, os cabelos da minha mãe branquejaram, mas o sorriso não sumiu de seus lábios. Viu seus filhos triunfarem na vida, se graduarem e formarem suas famílias. Com os olhos marejados, assistiu à formatura de cada um dos seus rebentos, orgulhosa da realização do seu sonho. Quando pôde. retomou suas aulas de pintura no Bunkyo e coloriu o mundo com muito quadros, com uma alegria quase infantil. Meu pai pôde, afinal, descansar um pouco.

Infelizmente ele partiu mais cedo, sem se despedir. Morreu serenamente, após uma partida de gateball. Minha mãe esqueceu-se de despedir. Sua memória foi consumida pelo mal de Alzheimer e retroagiu no tempo progressivamente. Acho que a sua última lembrança foram os tempos felizes de sua infância em Quioto, participando de uma festa hanami, apreciando a florada das cerejeiras.

Hoje, eles não estão mais entre nós. Restou uma imensa saudade deles. Restou, porém um legado importante. Os valores da cultura japonesa que eles nos transmitiram diuturnamente: lealdade, honestidade, justiça, honra e respeito. Não nos disseram que esses ensinamentos remetiam aos princípios dos antigos samurais. Aprendemos e absorvemos esses valores morais, pelo exemplo que eles nos deram durante a vida. Não foram discursos vazios.

A meu ver, eles – com DNA de samurais – foram sim autênticos guerreiros. Empunharam em sua luta, não as katanás”afiadas, mas os duros cabos de enxada, para formar uma nova geração de nikkeis vencedores no Brasil.

 

© 2021 Thoshio Katsurayama

Brasil genealogia identidade
Sobre esta série

O tema da 10ª edição das Crônicas NikkeisGerações Nikkeis: Conectando Famílias e Comunidades—abrange as relações intergeracionais nas comunidades nikkeis em todo o mundo, tendo como foco especial as emergentes gerações mais jovens de nikkeis e o tipo de conexão que eles têm (ou não têm) com as suas raízes e as gerações mais velhas. 

O Descubra Nikkei aceitou histórias relacionadas ao Gerações Nikkeis de maio a setembro de 2021; a votação foi encerrada em 8 de novembro. Recebemos 31 histórias (21 em inglês, 2 em japonês, 3 em espanhol e 7 em português) da Austrália, Brasil, Canadá, Estados Unidos, Japão, Nova Zelândia e Peru. Algumas foram enviadas em múltiplos idiomas.

Solicitamos ao nosso Comitê Editorial para escolher as suas histórias favoritas. Nossa comunidade Nima-kai também votou nas que gostaram. Aqui estão as favoritas selecionadas pelo comitê editorial e pela Nima-kai! (*Estamos em processo de tradução das histórias selecionadas.)

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About the Author

Thoshio Katsurayama mora em São Paulo. É diretor da Associação Cultural e Literária Nikkei Bungaku Brasil. Publicou seu primeiro livro, Califórnia, em 2011; e posteriormente outras obras infanto-juvenis, biografias e romances. A obra As Aventuras do Samurai Caolho publicada em 2017, recebeu menção honrosa no Prêmio Maria Antonia da Costa Lobo – UBE RJ (União Brasileira de Escritores). Seu último livro publicado pela Telucazu Edições foi Contos de um Velho Samurai sobre Bushido.

Atualizado em setembro de 2021

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