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História nº 39 (Parte I): O que eu ganhei de presente do Japão

Depois do falecimento de sua amada esposa, o pai de Marco deixou o único filho aos cuidados de seus pais e foi trabalhar em São Paulo. Três anos depois, com um bom trabalho e moradia, chamou o filho Marco para juntos começarem uma vida nova.

Marco estava com 11 anos de idade e morar com o seu querido Papà1 era o maior dos sonhos!

Todas as manhãs acordavam cedo, o pai ia trabalhar e Marco ia à escola e a vida tornou-se uma sucessão de alegrias para ambos. E o que Marco mais gostava era o fim de semana chegando, quando ia ver o Papà no seu local de trabalho.

Era uma lanchonete localizada numa rua central da Liberdade, o conhecido Bairro Oriental de São Paulo. Como Marco tinha orgulho de ver seu pai trabalhando! Filho de italianos, Papà tinha criado uma receita especial do pastel brasileiro com recheio de tofu e shimeji2, que logo se tornou o carro-chefe da casa e aumentou grandemente as vendas.

Terminando o ensino fundamental, Marco foi cursar o ensino médio à noite, enquanto fazia bico trabalhando numa farmácia. Continuou frequentando o Bairro Oriental e seu fascínio pelas coisas do Japão foi aumentando cada vez mais. Via as revistas de mangá na livraria, alugava filmes épicos de samurai na locadora, admirava as reluzentes espadas katana expostas na vitrine, pegava os panfletos sobre aulas de japonês que distribuíam na esquina. “Isso mesmo! Se eu puder falar japonês, seria muito legal!” – e imediatamente começou a frequentar a escola de nihongo.

E foi durante as aulas de japonês que ele veio a conhecer a Sumie. Ela era dois anos mais velha que Marco, trabalhava como cabeleireira e seu sonho era possuir um salão de beleza no Japão. “Será numa cidade com bastante brasileiro. Eu vou embelezar todo mundo e ganhar bastante dinheiro”.

“Mas por que um sonho tão grande assim?!” – a princípio ele se surpreendeu, mas à medida que iam se conhecendo, Marco foi sendo atraído pela determinação de Sumie. O resultado foi que eles se casaram, Marco com 22 anos e Sumie com 24. Mas, por um tempo, eles viveram separados.

“Eu estou bem aqui, e você primeiro termina a faculdade, ajuda o Papà a começar um novo negócio, depois você vem pra cá” – dizia Sumie, incentivando o marido.

Já no Japão, Sumie alugou uma pequena casa ao lado do supermercado de propriedade de seu irmão e abriu o “Sumie & Marco”. Embora Marco não fosse do ramo, ela colocou no estabelecimento o nome dele também, porque queria que o salão fosse unissex.

Depois de um ano e meio, finalmente, Marco chegou no Japão. Durante a semana, trabalhava numa fábrica de componentes eletrônicos a, aos sábados, ajudava os alunos da escola brasileira da região nas tarefas de casa e ensinava futebol às crianças do bairro. No começo, ele ia ao salão da Sumie pensando em ajudar no que fosse preciso, mas a esposa um dia disse: “Melhor você não vir porque atrasa o serviço”. A verdade é que Marco conversava em japonês melhor que a esposa, então, as clientes logo puxavam conversa, perguntavam sobre as coisas do Brasil, o que ele estava achando do Japão e a conversa fluía...

O casal vivia feliz porque a vida no Japão estava indo muito bem, mas faltava algo para lhes completar essa felicidade: a chegada de um filho.

E depois de três anos, Sumie ficou grávida e foi quando ela deixou o salão aos cuidados de uma prima e tirou um tempo para voltar ao Brasil. Marco não pôde acompanhá-la devido ao trabalho, mas prometeu que iria buscá-la dali a um mês.

Como fazia alguns anos que ela não retornava para ver a família, todos a receberam com carinho e abençoaram a chegada do esperado bebê. E ver os seus pais com saúde foi a melhor das coisas.

Um dia, três amigas que já eram mamães sugeriram que Sumie levasse o enxoval do bebê com roupas do Brasil, pois achavam muito graciosas. Sumie concordou e foram todas para a Vinte e Cinco de Março.

Saindo da estação de metrô, a ladeira que levaria ao destino era muito íngreme, então Sumie se apoiou no braço da amiga Maria. Foi quando alguém veio de trás correndo e passou por elas dando um empurrão tão violento, que as duas foram ao chão. Vários homens gritando “Pega ladrão” correram ao encalço do sujeito ladeira abaixo.

Maria se levantou imediatamente, mas Sumie ficou caída na via. As outras duas amigas e algumas pessoas que passavam por ali rodearam-na: “Você se machucou? Dá pra se levantar?”.

Sumie se pôs em pé, embaraçada, fazendo sim com a cabeça.

Nesse dia não foram às compras e voltaram para casa de táxi.

Naquele momento, ninguém sequer poderia imaginar que este incidente traria sérias consequências...

Continua >>>

Notas:

1. “Papai” em italiano

2. Queijo de soja e uma espécie de cogumelo

 

© 2021 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção Japão Nikkeis no Japão trabalhadores estrangeiros
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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