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História nº 33: “A Karen diz que não vai voltar ao Japão”

A estudante do ensino médio Toshie e seu colega Ivan se casaram e 5 meses depois nasceram as gêmeas Karen e Karina. Ivan, na época com 19 anos, desistiu de fazer faculdade e tentou vários empregos: foi caixa de supermercado, vendedor numa loja de autopeças, motorista de táxi. Mas como a vida estava difícil, ele foi ser decasségui no Japão, deixando a família no Brasil.

Karen e Karina cresceram saudáveis e quando estavam com 3 anos de idade, Toshie foi foi para o Japão levando as duas. Ela nunca tinha trabalhado até então, mas como arrumou emprego na mesma fábrica de seu marido, a sua mãe – que ajudava no bar e restaurante da família – precisou ir junto para tomar conta das netas.

Dois anos e meio depois, Toshie deu à luz um menino, mas o pós-parto foi complicado e ela precisou permanecer mais tempo internada. Seu marido tirou licença para ficar com ela no hospital, enquanto a Batchan1 cuidava das meninas que tinham entrado na escola e do bebê, além de fazer todo o trabalho doméstico.

Mas como Toshie demorava para se recuperar totalmente, a família aproveitou as férias de inverno de Ivan e foram todos para o Brasil.

E no dia 24 de dezembro a família de Toshie foi recebida com uma alegre e animada festa de Natal preparada pelos parentes. As gêmeas, que tinham deixado o Brasil bem novinhas, foram paparicadas pelos avós dos dois lados, ganharam uma porção de presentes e, junto com o irmãozinho de 10 meses, brincaram felizes.

Na passagem do ano, os pais de Toshie alugaram uma casa na praia, convidaram 15 parentes e festejaram a chegada do ano-novo. Toshie ficou muito emocionada ao lembrar que, quando estudante, em vez de passar o réveillon junto com a família reunida, ela preferia se divertir em festas na companhia de colegas e amigos. Ela nunca havia elogiado a comida que sua mãe fazia com tanto capricho. Mesmo assim, a mãe deixou de ajudar nos negócios da família para ir junto com ela ao Japão e estava sendo de grande ajuda. Seu desejo era expressar gratidão à mãe, mas faltaram-lhe palavras.

Ivan retornou ao Japão no dia 6 de janeiro e, como o aniversário da Batchan era no dia 17 do mesmo mês, ela quis comemorar com todos os parentes e só depois retornaria ao Japão com a filha e os netinhos.

Porém, uma semana antes, de repente Karen disse: “Brasil é melhor, eu quero ficar aqui para sempre. Vou poder ir à escola com a Mariana e o Rafa, nadar na piscina da casa da tia, comer pastel de feira sempre”.

No começo Toshie pensou ser um simples capricho de criança, mas a pergunta que lhe fez a outra filha, Karina, deixou-a bastante apreensiva: “Mamãe, na escola do Brasil também tem bullying?”.

“Karina, por que você pergunta isso? Você está querendo dizer que a sua irmã sofreu bullying na escola? É isso?”.

Como Karina não respondeu, Toshie foi ficando cada vez mais preocupada e começou a relembrar fatos recentes. O nascimento de seu filho, ela precisando continuar internada, seu marido faltando ao trabalho para fazer-lhe companhia no hospital – nesse intervalo de tempo, o que aconteceu com as filhas, principalmente a Karen? A Karina, alegre por natureza, festejou a chegada do irmãozinho, mas a Karen ficou tristonha, parece que até andou faltando às aulas.

Nessa noite, ela telefonou para Ivan: “A Karen diz que não vai voltar ao Japão”.

Ao que o marido respondeu como se fosse algo normal para uma criança: “Não está bom assim? Vamos deixar ela viver sem preocupação, bem relaxada, fazendo o que gosta”.

Na verdade, para Toshie o trabalho na fábrica era tão estafante que ela tinha deixado a responsabilidade pela educação das filhas nas mãos da Batchan, mas agora ela reconhecia sua falha e estava arrependida. Junto com sua mãe, ela conversou bastante com as filhas sobre voltar ou não ao Japão e, por fim, ficou decidido que elas iriam permanecer no Brasil.

A Batchan concordou na hora! Ela queria voltar a trabalhar no bar e restaurante que seu marido administrava e continuar mais 3 ou 4 anos. As gêmeas estudariam pelo menos até o 4º ano do ensino fundamental no Brasil e continuariam os estudos no Japão.

Toshie se dedicou às tarefas domésticas a que não estava acostumada, indo às compras e acompanhando a educação das filhas; Jitchan e Batchan passaram tempos preciosos com as netas e o netinho. Dali a 4 anos, elas e Jitchan iriam se juntar a Ivan no Japão e viveriam todos juntos. Era o objetivo de vida de Toshie.

Então, até esse dia chegar, tinham que viver da melhor forma possível!

 

Nota:
1. Maneira carinhosa de se referir a (1) avó, vovó e (2) avô, vovô  

 

© 2019 Laura Honda-Hasegawa

Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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