Descubra Nikkei

https://www.discovernikkei.org/pt/journal/2019/2/13/alegria-em-vive/

Na companhia da feliz melhor idade

Fui visitar uma tia muito querida que mora no litoral de São Paulo. Tenho orgulho dela, pois mesmo em seus oitenta e poucos anos, dirige seu automóvel, cozinha e mora sozinha desde o falecimento de seu esposo. Ah, e claro, gosta de fazer passeios, karaokê e tem muitos amigos.

Não convivo muito com idosos e minha mãe faleceu quando eu tinha 25 anos, então sinto falta de ouvir ensinamentos dos mais velhos. Fui visitá-la para matar a saudade da tia amorosa que tenho e aprender um pouquinho sobre o segredo de sua longevidade.

Assim que cheguei em sua casa, nós preparamos juntas sua receita lendária de nishime. Sabe aquelas receitas que não estão escritas, mas que todo mundo da família gosta de comer e gostaria de saber preparar? Eu me senti privilegiada por aprender na prática e ouvir suas dicas. Não é difícil cozinhá-lo e eu concluí que o segredo é o tempero mesmo, chamado amor.

Pronta a receita, embrulhamos a panela no furoshiki e fomos ao prédio de sua irmã, que mora na mesma rua. Caía uma garoa fina.

Tocamos a campainha do apartamento, mas ninguém atendeu. Após 5 minutos esperando no hall do andar, minha tia ouve vozes altas e diz: “Acho que são eles! Estão voltando da piscina”.

O elevador chegou e havia muitas pessoas. Fiquei sem entender como cabia tanta gente lá dentro e para minha surpresa, eles todos se conheciam.

Já em idade de cabelos grisalhos, cheios de experiência, eles foram saindo um a um e eu me senti como em cena de filme. Uma senhora com touca e óculos de natação na cabeça, outra senhora enrolada na toalha e outra de olhos azuis e batom bem rosa. Ah, e um casal de mãos dadas, que minha tia contou terem se conhecido pela Internet. Ufa, quanta gente! Se algum deles estivesse com bóia de patinho e pé de pato, eu não me surpreenderia. Era muita animação!

Falantes e em plena idade feliz, vieram da piscina do clube e cumprimentaram-me com um beijo, enquanto eu ouvia minha tia dizendo sorridente, “Essa é minha sobrinha”.

Entramos no apartamento, que estava bem fresquinho e super ventilado. Desenformamos o pudim de leite feito no banho-maria e preparamos o gohan. Minha tia e sua irmã discutiram sobre o que poderiam usar para fazer salada. Encontraram acelga na geladeira, tomatinhos cereja e fatiaram uma cebola. Ainda assim, mesmo já sendo comida suficiente para todos, vi uma bacalhoada sendo descongelada no fogão e aproveitei para pegar essa dica prática de mãe: sempre tenha uma bacalhoada congelada, para servir quando surgirem visitas inesperadas.

Todos animados na tarde chuvosa.

Todos almoçamos muito bem e eu estava rodeada de pessoas alegres. A chuva ficou extremamente forte e assim permaneceu a tarde toda, sendo impossível sair de casa. Achei que eu precisaria passar a noite por lá e ir embora no dia seguinte. Mas eu estava feliz por estar segura.

Aproveitando a chuva, aprendi a jogar o “gonarabe”, que é um jogo simples de estratégia para dois jogadores. Quem completa uma sequência de cinco peças antes do adversário, é o ganhador. Não consegui aprender as estratégias muito bem. Como eu soube que ninguém consegue ganhar do senhor que nos ensinou a jogar, então não me esforcei muito. Devido à idade, ele não consegue falar claramente e se movimenta com dificuldade, mas é nítido que sua lucidez e raciocínio estão ótimos. Depois minha tia explicou que ele é amigo de sua irmã, não é um parente como eu achava que era, por ser tão bem tratado. Ele foi adotado como amigo!

O jogo “gonarabe”.

Minha tia sentada no sofá falou alto, “Vamos jogar pintinho?”. Isso gerou uma bela gargalhada. Na verdade, é “pontinho” o nome do jogo de baralho. Quem perdia a rodada, pagava ao ganhador moedinhas simbólicas de um centavo, que ficam guardadas em um chawan preto. Minha tia ajudava o senhor a descartar as combinações possíveis de jogos e a pegar as cartas, por causa da sua dificuldade de mobilidade.

O baralho e as moedinhas.

Passamos o resto da tarde jogando baralho. A senhora do casal bocejava com frequência e dizia, “Ahhh, por que sentimos tanto sono depois da piscina?”.

Então a chuva diminuiu e voltamos para a casa da minha tia. Comemos bolo de banana, enquanto conversamos sobre as decisões que tomamos na vida. Contou-me o quanto cuidou do meu jitchan e que, teimoso, só aceitava ser cuidado por ela. Já, minha batchan faleceu quando eu tinha 2 anos, então tenho razão em não lembrar muitas coisas sobre ela.

Quando a conversa está boa, o tempo voa. Chegou a hora de ir embora para minha cidade São Paulo.

Bem, fui ao litoral, mas não pisei na areia e não encostei na água do mar. Fiquei dentro de um apartamento, admirando a sabedoria e a leveza da velhice. Alguns segredos da longevidade? Solidariedade, sentir gratidão, alegria em viver e acreditar em Deus.

 

© 2019 Silvia Lumy Akioka

jogos de tabuleiro Brasil culinária famílias comida amigos jogos go (jogo) São Paulo (São Paulo)
About the Author

Silvia Lumy Akioka é sansei brasileira. Foi dekasegui aos 17 anos e em outra ocasião, bolsista na província de Fukuoka, quando publicou a série “O ano de uma brasileira no outro lado do mundo” - seu primeiro contato com este site. É admiradora da cultura japonesa e também gosta de escrever sobre outros temas em blogs. Esteve em Los Angeles como voluntária em 2012 e há 6 anos, é consultora oficial do Descubra Nikkei.

Atualizado em fevereiro de 2019

Explore more stories! Learn more about Nikkei around the world by searching our vast archive. Explore the Journal
Estamos procurando histórias como a sua! Envie o seu artigo, ensaio, narrativa, ou poema para que sejam adicionados ao nosso arquivo contendo histórias nikkeis de todo o mundo. Mais informações
Novo Design do Site Venha dar uma olhada nas novas e empolgantes mudanças no Descubra Nikkei. Veja o que há de novo e o que estará disponível em breve! Mais informações