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Técnica e arte japonesas dão formas e beleza à argila em Cunha

O ceramista Marcelo Tokai foi ao Japão aprender o ofício do avô e hoje mantém um ateliê em parceria com a esposa em Cunha, SP (foto: Atelier Gallery Tokai/Instagram)

Conhecimentos adquiridos no Japão quando usados em argila têm o poder de criar, transformar. O nissei Marcelo Yoshinori Tokai, 46 anos, dedica-se justamente a isso, à arte da cerâmica. Descendente de Hokkaido e nascido em Mogi das Cruzes, São Paulo, o artista foi para a terra natal de seus pais aprofundar-se nas tradicionais técnicas e, mais tarde, seguiu para a cidade de Cunha (SP).

Aprendizado no Japão

“Eu e minha esposa Luciane Yukie Sakurada estudamos cerâmica no Japão, em Tochigi ken (‘província’), Mashiko machi (‘cidade’)”, localizada ao norte de Tokyo. A inspiração para aprender o ofício vem de família. “Meu avô por parte de pai era ceramista”, conta Marcelo. Já Luciane é sansei e não teve contato com a cerâmica antes de ir ao Japão. “Moramos durante 11 anos, de 1996 a 2007, em Mashiko que é um polo de cerâmica”.

E complementa: “estudei no Mashiko Tougei Club que funciona no sistema de aprendiz. São mais ou menos quatro anos para aprender todo o processo. Como oferecerem um workshop de cerâmica para turistas, eu ensinava lá”.

Depois, foi a vez de receber ensinamentos do sensei Masaho Ono que realiza queima em fornos Noborigama (noboro significa “rampa” em português e gama, “forno”) e de Masakazu Kusakabe que é um sensei especialista em construção de fornos.

O forno Noborigama nasceu na China, foi aperfeiçoado pelos coreanos e incorporado pelos japoneses. Construído em degraus, em declive natural, tem quatro câmaras interligadas que aproveitam o calor produzido na fornalha. A estrutura do forno, que tem capacidade de atingir 1.400ºC, conta ainda com uma chaminé na parte posterior.¹

Moro na cidade da cerâmica, Mashiko. Uso materiais locais para fazer apenas cerâmica de uso diário. Coloco na roda de oleiro por ser mais fácil para eu transferir meu forte desejo para a argila. Queimo em um forno a lenha e em um forno descendente que podem me dar resultados mais empolgantes do que espero geralmente.²

Masaho Ono

Compilei uma lista de ideias que considero para dar base ao meu trabalho. Tradições, a escolha pela argila, o método de queima, a relação para com materiais, assim como a harmonia entre o trabalho e o universo são todos muito importantes para mim.³

Masakazu Kusakabe

Marcelo e Luciane decidiram voltar ao Brasil por conta do filho mais velho que começaria a ir para a escola e, se entrasse lá, não retornariam mais. “Escolhemos Cunha, pois vimos em uma reportagem que era uma cidade de cerâmica artística e de fornos Noborigama [onde atualmente existem seis em atividade]”, relata.

O ateliê

Toda a produção do Atelier Tokai é feita por Marcelo e sua esposa Luciane Sakurada (foto: Atelier Gallery Tokai/Instagram)

Tudo o que é produzido no Atelier Gallery Tokai é feito pelo casal de ceramistas. “Geralmente faço no torno e minha esposa, em modelagem manual em placas”, explica Marcelo.

A produção média é de 300 peças por fornada que são queimadas em forno a gás a 1.300ºC, com o qual se tem maior controle de temperatura e atmosfera, proporcionando cores e texturas diversas.⁴ Esse trabalho leva cerca de dois meses, a depender do tamanho e da complexidade da peça. Os utilitários recebem um cuidado especial – são cobertos por esmaltes com elementos naturais sem óxido de metal pesado. O belo e zeloso resultado pode ser visto no centro de Cunha, na Galeria Quinta Essência.

Fascinado por mergulho, Tokai explora nas esculturas a flora marinha, como conchas e corais. Enquanto isso, sua esposa Luciane tem outro estilo, “mais rústico e orgânico”, inspirado na natureza e no mar.

Cultura e idioma

Desde criança, o artista conviveu com a cultura japonesa, porque seus pais são isseis. Também por isso falam pouco português. “Em casa é assim, quando falamos com nossos pais, sempre falamos em japonês, mas acaba saindo uma palavra ou outra em português.” Com os filhos, “tentamos falar em japonês, mas acabamos usando só algumas palavras”, diz. O mais velho – que nasceu no Japão – entende um pouco e o mais novo às vezes pergunta: “o que que é isso?” [sic]

A cultura nipônica esteve presente ainda em outros aspectos da vida de Marcelo. Chegou a praticar karatê, kendô e um pouco de judô.

Quando o assunto é comida, a família Tokai é bastante diferente de muitos nikkeis (que têm à mesa pratos típicos brasileiros e japoneses). Nirá, mitsuba, gobo, shisô, hana umê, miogá, renkon, takenoko e rakyo são PANCs (Plantas Alimentícias Não Convencionais), mas fazem parte da alimentação do dia a dia. “Sempre tem umeboshi e missô na geladeira e não pode faltar gohan (arroz japonês sem tempero) nas refeições – meus filhos não comem outro tipo”. Além disso, eles têm o costume de dizer itadakimasu antes e gotisousama depois de comer.

Já os valores japoneses que Marcelo segue são o respeito com os mais velhos, o compromisso com o que se promete e chegar dez minutos antes do horário marcado. E, para se comunicar, descobriu um hábito ou até mesmo uma característica própria. “Percebi que muitas palavras penso em japonês e traduzo para o português; por isso, acho que minha é mais japonesa”, afirma.

No papel de agente de difusão da arte, o ceramista considera a disseminação da cultura de extrema importância. “Cito, por exemplo, a cidade onde moro, Cunha, onde foi introduzida a tradição de fazer cerâmica artística por japoneses. Vejo o desenvolvimento social e cultural da cidade bem à frente das outras ao redor do Vale [do Paraíba]”.

“O japonês, aonde for, não se dilui entre as pessoas, seja na aparência, na alimentação ou na cultura. Sempre se sobressai. Acho que isso é bom e é importante preservar e transmitir para os nossos filhos”, conclui.

Cerâmica em Cunha: do Japão para o Brasil

A comunidade de ceramistas de Cunha nasceu em 1975, com a chegada do arquiteto português Alberto Cidraes, e de Mieko Ukeseki e o marido.⁵

Ao se conhecerem em uma pequena aldeia de artistas de cerâmica na província de Fukuoka, Cidraes convidou os novos colegas a criar no Brasil um grupo nos moldes semelhantes aos do Japão, mas em plena liberdade artística e com um forte caráter de experimentação.⁶

Juntaram-se a eles aprendizes do Grupo do Matadouro, cujo ateliê privilegiava os materiais locais e a baixa tecnologia no processo de produção, e ainda outros chegados desde a década de 1990.⁷

Hoje, a cidade reúne mais de 20 ateliês de ceramistas e tem a maior concentração do tradicional forno japonês Noborigama dentro da América do Sul.⁸

Referências:

1. Artesãos de Cunha, SP, criam peças de beleza singular e transformam a cerâmica em atração turística e Atelier de Cerâmica

2. Cultural Confluence wood Fire Symposium

3. Miharu Town Art'n Craft

4. Ateliê Mieko E Mário

5 – 6. MORAIS, Liliana Granja Pereira de. “Mieko Ukeseki do Japão a Cunha (SP): trajetória de uma mulher ceramista entre duas culturas”. Tese (Mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

7 – 8. O Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha

 

© 2019 Tatiana Maebuchi

About the Author

Nascida na cidade de São Paulo, é brasileira descendente de japoneses de terceira geração por parte de mãe e de quarta geração por parte de pai. É jornalista formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e blogueira de viagens. Trabalhou em redação de revistas, sites e assessoria de imprensa. Fez parte da equipe de Comunicação da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social (Bunkyo), contribuindo para a divulgação da cultura japonesa.

Atualizado em julho de 2015

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