Descubra Nikkei

https://www.discovernikkei.org/pt/journal/2019/09/20/

Masao Iimuro: Força e exemplo de uma comunidade que superou a injustiça e a perseguição

Quando conheci Masao Iimuro pessoalmente em 2007, eu já estava a par de muitos detalhes da sua vida. Eu sabia que ele tinha embarcado rumo ao México no final de 1940, partindo da cidade de Nagoia, onde havia nascido 19 anos antes. Eu já tinha detalhes precisos da sua detenção em maio de 1942 e do seu subsequente encarceramento no presídio das Ilhas Marias; em Lecumberri [antiga prisão na Cidade do México]; e na fortaleza de Perote, no estado de Veracruz. Sem julgamento ou qualquer acusação precisa e apenas com a imputação de ser um “estrangeiro perigoso”, o jovem japonês passou sete anos encarcerado, até ser posto em liberdade em 1949.

Desde a sua chegada no continente americano no começo do século XX, além de serem discriminados, os imigrantes japoneses eram efetivamente vistos por setores do governo dos Estados Unidos como um “posto avançado” do exército imperial, pronto para invadir o país. Por essa razão, muitos anos antes do início da guerra entre o Japão e os EUA em 1941, os órgãos de inteligência americanos os vigiavam e perseguiam por todo o continente.

A família Mochida esperando ser enviada a um campo de concentração nos EUA (Administração Nacional de Arquivos e Registros)

O confinamento de 120.000 japoneses e seus descendentes em campos de concentração nos Estados Unidos e a prisão de Iimuro serviram como prova violenta e extrema da guerra contra os imigrantes japoneses no continente americano. Assim sendo, eu achava que ouvir o testemunho de Iimuro diretamente seria muito importante para entender essa etapa da história do México. Eu entrei em contato com ele e pedi que me deixasse entrevistá-lo, mas ele rejeitou categoricamente o pedido, dizendo que não tinha a menor vontade de discutir o assunto. Para a minha sorte, pedi a um amigo em comum, o jornalista Shozo Ogino, para solicitar mais uma vez a entrevista. Iimuro finalmente concordou, com a condição de que o encontro fosse realizado na casa do jornalista.

Cópia da carta de Iimuro inspecionada pelas autoridades mexicanas e americanas. (Arquivo Geral da Nação)

Por intermédio de acervos no México e nos Estados Unidos, eu já havia acumulado extensos e detalhados relatórios que os agentes do Ministério do Interior e do FBI dos EUA possuíam sobre Iimuro. Nos arquivos, encontrei cópias das cartas que o jovem Iimuro havia enviado aos seus amigos e familiares no Japão. Nestas, ele os encorajava a sentirem orgulho de ser japoneses e dizia que se sentia “muito feliz de sê-lo”. Além disso, escreveu algo muito delicado: “Em alguns dias, saio para dar um tiro em Roosevelt ... depois vou destruir o Canal do Panamá”. Quando Iimuro foi detido, ele admitiu a autoria das cartas e a seriedade das ameaças, mas explicou às autoridades que eram evidentemente piadas e que ele não teria como executá-las.

Na casa de Ogino, entreguei ao então avô de 87 anos todo o material – já encadernado – que eu havia copiado dos arquivos. O volume deste foi a primeira coisa a surpreender Iimuro. Eu também lhe informei que havia relatórios do diretor geral do FBI, Edgar Hoover, endereçados ao general Edwin Watson, secretário do presidente Roosevelt, para que ele se inteirasse sobre o caso de Iimuro no México. Quando a marinha japonesa atacou a base americana de Pearl Harbor em dezembro de 1941, o governo mexicano, a pedido do americano, obrigou os imigrantes japoneses e suas famílias, dispersos em vários estados pelo país, a se deslocarem para as cidades de Guadalajara e México, onde ficariam instalados. Mas a prisão de Iimuro foi extraordinária porque a sua justificativa teve como base as ideias e posições políticas expressadas nas cartas dele. As autoridades o consideravam um “estrangeiro perigoso” de “afiliação fascista” a quem se aplicava o artigo constitucional 33, o que significaria a sua expulsão do país. A ordem de expulsão acabou não sendo implementada devido à ruptura das comunicações com o Japão; como consequência, foi decidido aprisioná-lo sem julgamento.

Antes de conhecer Iimuro, a única imagem que eu tinha do jovem era aquela manifestada nas suas cartas. Para mim não era difícil imaginá-lo – como foi eventualmente confirmado – com uma bandana em volta da cabeça, a hachimaki, gritando banzai ao despachar as tropas japonesas rumo à China. “Vamos, rapazes japoneses; seremos guerreiros valentes” era uma estrofe de uma canção que Iimuro cantou junto com centenas de estudantes na estação de trem de Nagoia. As cartas demonstravam as fortes convicções nacionalistas daquele jovem, como também o seu apoio à direção da política expansionista do Japão frente às potências ocidentais que ocupavam vários países asiáticos.

Documento de entrada no México de Masao Iimuro (Arquivo Geral da Nação)

De fato, a vida de Masao Iimuro reflete claramente as ideias e a visão dos jovens educados nos anos 30, durante a plena ascensão da ala militarista que assumiu o controle do governo japonês e que levou à intervenção militar contra a China a partir de 1931. Deste modo, através da sua história pessoal podemos reconstruir aquele clima de hostilidade e o confronto entre as grandes potências que empurraram o mundo inteiro para uma guerra mundial.

Iimuro encontrou no México um ambiente favorável para acentuar as suas convicções contra os Estados Unidos. Em 1941, a população estava amplamente ciente das agressões e intervenções militares dos EUA no México. Três anos antes, em 1938, o governo do general Lázaro Cárdenas havia recuperado para a nação as riquezas naturais do subsolo ao expropriar os ativos das companhias petrolíferas inglesas e americanas – medida que gerou uma enorme onda de apoio popular.

O jovem japonês constatou esta situação, escrevendo nas suas cartas que “as pessoas levam muito a sério as ofensas dos ingleses e americanos”; além disso, ele se sentiu apoiado pela população mexicana, acreditando que “as massas são japonófilas”. Até então, estes sentimentos populares estavam em sintonia com os da população japonesa, que considerava os Estados Unidos e a Inglaterra como os demônios do mal, kichiku beiei, que precisavam ser combatidos.

As conversas longas e elucidativas que tive mais tarde com o Sr. Iimuro na sua casa me permitiram conhecer profundamente o jovem que havia chegado ao México. Logo pude notar a tremenda vergonha que o afligia por ter escrito aquelas cartas e por ter passado tantos anos na prisão, fatos que ele mantinha em segredo até mesmo da sua própria família. Toda a documentação que eu havia entregue a ele tinha sido cuidadosamente guardada no cofre para que ninguém a pudesse ler. Com muita discrição, mas já com confiança suficiente, as entrevistas foram se transformando em conversas muito agradáveis. Iimuro foi revelando os fatos que haviam marcado toda aquela geração de jovens japoneses, especialmente a fase da “guerra santa” – seisan – durante a qual o Japão procurou, para o seu benefício, “purificar” de forma agressiva a influência das potências ocidentais na Ásia.

As experiências pessoais de Iimuro permitiram que eu me aprofundasse na história japonesa daquela época, já que ele possuía uma memória extraordinária e um grande conhecimento da história do seu país decorrente da sua formação autodidata adquirida com o passar do tempo. De entrevistado, Masao Iimuro foi virando o meu professor; qualquer dúvida que eu tivesse sobre o período anterior à guerra e sobre a imigração japonesa no México, eu podia contar com a sua ajuda para esclarecê-la. Sua esposa, Fumiko, às vezes tomava parte nas nossas conversas sobre o Japão do passado. Juntos, eles reconstruíram o kurai tanima, ou vale sombrio, nome pelo qual a população recorda o longo período de guerra que o Japão viveu a partir de 1931. Em conjunto, chegamos à conclusão que esse vale acabou estendendo o seu manto ao continente americano, como evidenciado pelo racismo e pela perseguição aos japoneses resultantes da histeria de guerra.

Eu consegui entender as motivações de Iimuro que, sem pegar em armas, chegou ao México ciente que o seu papel era apoiar a sua pátria através do trabalho realizado com grande eficiência nas Porcelanas Kyoto, firma onde havia começado a trabalhar aos 14 anos de idade na sua cidade natal de Nagoia. Esta empresa produtora de azulejos e cerâmicas havia expandido as suas vendas para vários países da América Latina com grande sucesso. Seu proprietário, Shujiro Yasuda, encarregou um outro imigrante residente no México, Jiro Oikawa, de se tornar representante da companhia e abrir uma loja na importante Rua de Madero, no centro da Cidade do México. Iimuro chegou a ajudar Oikawa na gerência do estabelecimento, alcançando tanto sucesso que em pouco tempo outra filial foi aberta num mercado no bairro de Tacubaya, onde trabalhou até a sua detenção.

Iimuro, libertado quatro anos após o fim da guerra – sem recursos, sem emprego, sem lugar para morar – saiu em busca do Sr. Oikawa. Juntos, a princípio eles reiniciaram os seus contatos com o dono das Porcelanas Kyoto, que continuava com a sua empresa, se dedicando à exportação de produtos variados. Aproveitando a fase de crescimento acelerado da economia japonesa, Iimuro viajou ao Japão em 1954 para fazer um acordo com o Sr. Yasuda com o objetivo de abrir uma nova empresa no México. Durante a sua estada, Iimuro se casou com a filha de Yasuda. Vale lembrar que para ir ao Japão via Los Angeles, Iimuro teve que comparecer na embaixada americana para pedir o seu visto. O encarregado da embaixada lhe disse sarcasticamente: “Como é que vamos poder garantir a vida do presidente Eisenhower? Teremos que consultar Washington”.1 Iimuro não voltou mais; viajou pelo Canadá.

Casamento de Masao Iimuro e Fumiko no Japão (coleção da família Iimuro)

Com o passar dos anos, a empresa fundada por Iimuro, Casa Yasuda, introduziu máquinas de costura japonesas no México, vendidas com grande sucesso em diversos estabelecimentos. Mais tarde, foram introduzidos os equipamentos de som Kenwood. Até chegar aos 80 anos, Iimuro continuou trabalhando duro; [eventualmente] ele fechou a empresa, se dedicando então a ler do “a” ao “z” todos os jornais do México e do Japão, como também os romances de mistério que ele adorava.

A vida deu a Iimuro tempo para apreciar as suas netas e suas duas filhas, que são profissionais de sucesso: uma médica e a outra arquiteta. Magnânimo com o que passou, Iimuro acreditava que o seu vigor possivelmente resultava dos sete anos passados na prisão. Ele se manteve assim até o último dia de vida, quando faleceu pacificamente aos 94 anos.

Masao Iimuro junto com a sua esposa e netas (coleção da família Iimuro)

A injusta prisão de Iimuro e a concentração [forçada] das comunidades japonesas [em apenas duas cidades mexicanas] como consequência da guerra são fatos que nunca deveriam ter acontecido e muito menos repetidos. A força, o trabalho e a organização dos imigrantes lhes permitiram superar este revés. O reconhecimento do ocorrido e um pedido de desculpas por parte do governo seria o mínimo que deveríamos esperar.

Nota:
1. Shozo Ogino, Eu Me Encarrego de Roosevelt. Memórias de um Prisioneiro Político: Masao Iimuro, Artes Gráficas Panorama (sem data). Consultar também A Guerra Contra os Japoneses no México, de Sergio Hernández Galindo. Edição Itaca, 2011.

 

Nota do autor: Agradeço a Joaquín Rosales por seus valiosos comentários que melhoraram este artigo.

 

 
 

© 2019 Sergio Hernández Galindo

Estados Unidos da América Japão Masao Iimuro México Segunda Guerra Mundial
Sobre esta série

A palavra “herói” pode ter significados diferentes para pessoas diferentes. Nesta série, exploramos a ideia de um herói nikkei e o que isso quer dizer para cada pessoa. Quem é o seu herói? Qual é a história dele? Como ele(a) influenciou sua identidade nikkei ou a conexão com sua herança cultural nikkei?

Aceitamos o envio de histórias de maio a setembro de 2019; a votação foi encerrada em 12 de novembro de 2019. Todas as 32 histórias (16 em inglês, 2 em japonês, 11 em espanhol, e 3 em português) foram recebidas da Austrália, Brasil, Canadá, Estados Unidos, Japão, México e Peru. Dezoito dessas submissões foram de colaboradores inéditos do Descubra Nikkei!

Aqui estão as histórias favoritas selecionadas pelo Comitê Editorial e pela comunidade Nima-kai do Descubra Nikkei.


Seleções dos Comitês Editoriais:

Escolha do Nima-kai:

Para maiores informações sobre este projeto literário >>

Confira estas outras séries de Crônicas Nikkeis >>

Mais informações
About the Author

Sergio Hernández Galindo é formado na Faculdade do México, se especializando em estudos japoneses. Ele publicou numerosos artigos e livros sobre a emigração japonesa para o México e América Latina.

Seu livro mais recente, Os que vieram de Nagano. Uma migração japonesa para o México (2015) aborda as histórias dos emigrantes provenientes desta Prefeitura tanto antes quanto depois da guerra. Em seu elogiado livro A guerra contra os japoneses no México. Kiso Tsuru e Masao Imuro, migrantes vigiados ele explica as consequências das disputas entre os EUA e o Japão, as quais já haviam repercutido na comunidade japonesa décadas antes do ataque a Pearl Harbor em 1941.

Ele ministrou cursos e palestras sobre este assunto em universidades na Itália, Chile, Peru e Argentina, como também no Japão, onde fazia parte do grupo de especialistas estrangeiros em Kanagawa e era bolsista da Fundação Japão, afiliada com a Universidade Nacional de Yokohama. Atualmente, ele trabalha como professor e pesquisador do Departamento de Estudos Históricos do Instituto Nacional de Antropologia e História do México.

Atualizado em abril de 2016

Explore more stories! Learn more about Nikkei around the world by searching our vast archive. Explore the Journal
Estamos procurando histórias como a sua! Envie o seu artigo, ensaio, narrativa, ou poema para que sejam adicionados ao nosso arquivo contendo histórias nikkeis de todo o mundo. Mais informações
Novo Design do Site Venha dar uma olhada nas novas e empolgantes mudanças no Descubra Nikkei. Veja o que há de novo e o que estará disponível em breve! Mais informações