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História nº 31: Yuji é o cara!

Yuji e eu somos amigos de longa data. Desde criança estávamos juntos, morávamos perto também. Depois da escola, ficávamos brincando pelo meio do caminho e ao voltarmos para nossas casas o que nos esperava era aquela bronca de nossas mães.

Até o 4º ano do ensino fundamental estudamos na mesma escola, mas do 5º ano em diante eu fui para escola particular. Graças ao meu pai que trabalhava no Japão, nossa vida foi ficando mais estável, eu e minha irmã passamos a frequentar escola particular e minha mãe não precisou mais fazer trabalho temporário.

Nós estudávamos em escolas diferentes, mas nos finais de semana eu e Yuji estávamos sempre juntos, jogando futebol, brincando com os games da moda, vendo anime.

Mas isso durou pouco. Certo dia, ao voltar da escola, Yuji encontrou seu pai caído no chão da sala. Sua mãe ainda não havia chegado do trabalho, seus dois irmãos mais velhos voltavam tarde porque estudavam à noite, assim, não havia ninguém em casa.

Ele saiu correndo para pedir ajuda ao dono da padaria da vizinhança, o seu pai foi levado ao hospital, mas já era tarde demais. Ele estava com apenas 51 anos de idade e para o caçula Yuji foi um choque muito grande perder o pai tão novo assim.

Final de semana, eu estive algumas vezes na casa do Yuji, mas ele nunca se encontrava. De manhã fazia bico ajudando na quitanda e, a partir da tarde, ficava no supermercado ajudando os compradores a guardar as compras na sacola plástica. Pensei: Como é dura a vida do Yuji.

Terminando o ensino fundamental, passei para o ensino médio também em escola particular. Achava que era a coisa mais normal: meu pai trabalhando no Japão e mandando dinheiro para nós e nós com uma vida confortável.

Yuji também se matriculou no ensino médio, mas como precisava trabalhar o dia inteiro, passou para o curso noturno. Quando eu soube, quis ajudá-lo de algum jeito, pois diziam que o curso noturno era mais fraco. Mas Yuji não deu importância e continuou estudando à noite e trabalhando na farmácia durante o dia.

No 3º ano eu tinha que me preparar para o vestibular e encontrava o Yuji muito pouco. Minha primeira opção era entrar na USP, mas não deu; entrei na Universidade Estadual do Paraná e fiquei longe de São Paulo.

Depois de terminar o ensino médio, Yuji fez cursinho pré-vestibular graças ao dinheiro que juntou nos três anos anteriores e entrou numa universidade particular em São Paulo.

Eu frequentava a faculdade e vivia a vida que pedi a Deus, no conforto, sendo sustentado pelo pai decasségui no Japão. Nesse meio tempo, conheci uma moça, me casei e logo nasceu minha filha. Por causa disto tive de largar a faculdade e trabalhar para sustentar a família.

Mais ou menos na mesma época, Yuji ficou desempregado, trancou a faculdade e decidiu ir trabalhar no Japão.

Quando eu soube, pensei em trabalhar no Japão também. Yuji me deu o maior apoio, mandou apostilas do curso de língua japonesa, deu muitas informações, mas a minha família foi totalmente contra: “Não vou deixar você ir pro Japão não”, “Eu posso até ir junto, mas não entendo a língua, não vou saber criar nossa filha sem ajuda de ninguém”, “Nem pensar que eu vou querer ir junto”.

O Yuji é o cara! Ele se esforçou de verdade no Japão. Tiro o chapéu pra ele!

Os primeiros dois anos ele ficou em Isezaki, província de Gunma, trabalhando em fábrica. Continuou estudando japonês e foi voluntário como instrutor de um time juvenil de futebol.

Depois de Gunma, ele foi trabalhar em Okinawa. Desde criança Yuji gostava de praia, mas com a morte do pai não teve mais folga para momentos de lazer. Estando agora no Japão, quis viver perto do mar e foi trabalhar num hotel na belíssima ilha de Ishigaki. E pelas postagens que ele fez no Facebook, dava para ver que o Yuji estava feliz, mais radiante do que o sol e o mar de Okinawa. Por isso eu digo que o Yuji é o cara! Foi para uma terra desconhecida, passou por várias experiências, ganhou mais confiança e continua seguindo em frente.

Yuji viveu cerca de quatro anos no Japão e agora se encontra em Sidney, na Austrália, onde trabalha e estuda inglês. Seu sonho é retornar ao Brasil, construir uma casa para sua mãe, trabalhar e voltar a estudar.

Com certeza ele vai realizar seu sonho. Porque Yuji é o cara!

 

© 2019 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção trabalhadores estrangeiros Japão Nikkeis no Japão
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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