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A Liberdade de ser

Anúncio questionando “rótulos”, no bairro Liberdade. (Fotografia de Victor Hugo Kebbe)

Quando comecei meus estudos sobre tatuadores/as nipodescendentes no Brasil, em minha pesquisa de mestrado em Antropologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), eu tinha alguma noção do que viria pela frente. É muito complicado ler textos, artigos, teorias sobre um grupo de pessoas – os/as japoneses/as e seus/as descendentes – do qual você também faz parte. Isso porque tudo aquilo evocava memórias, vivências, experiências muitas vezes dolorosas, de preconceito, de racismo, e por mais sensíveis que esses textos tentassem ser, em algum momento eu me deparava com alguma formulação, alguma ideia que me causava extrema angústia. Então pensava: como eles podem pensar/dizer algo assim? Eu não sou como esses/as teóricos/as estão dizendo que sou.

Para começar, os próprios termos para se referir às/aos nipodescendentes são bastante problemáticos: é comum sermos chamados/as de japoneses/as, nikkeis, nipo-brasileiros/as. Mas o que esses termos realmente querem dizer? Apesar de literal, nipodescendentes também me parece uma categoria vazia de significado. Sim, somos descendentes de japoneses/as, mas isso nos define? Ela diz sobre todas as experiências pelas quais passamos?

A sensação que tinha quando lia esses textos é que esses termos tomavam “os/as japoneses/as”, “os/as nikkeis”, “os/as nipo-brasileiros/as”, “os/as nipodescendentes” como um grupo fechado e homogêneo, que tem na sua ascendência todas as respostas para suas vivências, como se todas essas vivências fossem as mesmas e experienciadas da mesma forma por todas as pessoas de ascendência japonesa. E isso acaba por cristalizar noções sobre o que é ser nipodescendente no Brasil. Mas, afinal, o que é ser nipodescendente no Brasil?

Enquanto nipodescendente, achava que eu teria uma resposta muito melhor do que a dos/as teóricos/as que eu havia lido. Mas a realidade foi bastante diferente. Apesar de estar preocupada em não soar como muitos/as desses/as autores/as, eu não estava atenta a uma segunda problemática: eu mesma.

Na primeira incursão em minha pesquisa de campo, fui conversar com um conhecido tatuador de São Paulo, que aqui chamarei de Felipe. Descendente de japoneses/as por parte de seu pai, Felipe aprendeu a tatuar com este, desde pequeno, e se especializou na mundialmente famosa tatuagem japonesa.

Conversamos sobre a vinda de seus avós para o Brasil, sobre o tempo que passou no Japão como decasségui, onde começou a tatuar profissionalmente. Também falamos sobre seu estilo e suas técnicas de tatuagem. Mas quando saí de seu estúdio, terminada a entrevista, a sensação que me dominava era de um extremo mal-estar. Eu não conseguia compreender o porquê.

Em um primeiro momento, percebi que a entrevista não saiu como eu imaginava. Notei que era como se meu entrevistado saísse pela tangente a todo momento, como se escapulisse por entre meus dedos. Essa sensação de não ter dado conta de tudo que eu queria, de não ter abordado todas as questões de minha pesquisa e, principalmente, de não ter chegado a conclusão alguma me deixou um gosto amargo.

Talvez a explicação mais rápida para isso seja a insegurança de antropóloga de primeiro campo.

Já no início da entrevista, percebo que havia algo estranho acontecendo. Obviamente, eu não estava à vontade com a situação, mas não era somente isso. Algo me aprisionava, colava meus punhos no caderno de anotações, baixava o volume da minha voz. Diante de uma situação formal, precisei formatar certos comportamentos meus, me moldar diante de certas expectativas. Mas que expectativas eram estas?

Percebo que, ao lidar com meu primeiro informante, nipodescendente, a minha postura foi reprimir certos aspectos de minha personalidade que fugiam de uma determinada expectativa que eu imaginava recair sobre mim por também ser nipodescendente. Assim, durante a entrevista, agi com paciência ao ter de esperar por cerca de uma hora até que meu entrevistado chegasse, com persistência e dedicação ao pedir – até certo ponto – que me explicasse mais de uma vez algo que não tinha entendido, com submissão ao baixar meu tom de voz, com educação quando, no meio da entrevista, ele teve de atender à porta porque alguém procurava seu sócio. Parece-me que são essas expectativas, muitas vezes estereotipadas, que se esperam dos/as nipodescendentes.

Elas moldam o que chamarei aqui de “caixa”. Dentro de uma lógica de organização, classificamos mentalmente as características que esperamos dos/as japoneses/as, formatamos a caixa de acordo com essas expectativas. Diante de determinadas situações, nos colocamos na caixa – assim como inserimos outras pessoas –, nos enquadramos, nos formatamos, tudo, obviamente, de uma maneira não consciente nem deliberada.

A sensação de trabalho malogrado a que mencionei parece ter sua origem nisso. No momento em que coloquei meu entrevistado na mesma caixa que eu, esperava dele as mesmas ideias que eu tinha sobre as questões levantadas. Isso não ocorrendo, o sentimento de fracasso, de insatisfação não poderia ser outro.

Outro ponto importante a ser destacado é sobre a caixa em que fui colocada por Felipe. A todo instante ele usava expressões em japonês, falava de assuntos como se eu tivesse pleno conhecimento do que dizia. Isso naturalmente ocorre com a maioria, se não todos, os antropólogos e antropólogas que um dia estiveram em campo. Entretanto, noto que os pontos que, para Felipe, eram compartilhados comigo não me levavam em conta enquanto antropóloga, mas como nipodescendente. Por me colocar na mesma caixa em que se pôs, Felipe presumiu que muito do que dizia fazia parte do meu entendimento “natural”.

A caixa em que eu me coloquei junto de Felipe mais a caixa em que ele me colocou junto de si resultaram numa entrevista toda cortada, aberta, sem muitos entendimentos, talvez de ambas as partes, porque, enquanto pessoas supostamente pertencentes a um mesmo grupo – os/as japoneses/as, nikkeis, nipo-brasileiros/as, nipodescendentes –, nós, na realidade, compartilhávamos muito pouco.

Quando entrei em campo pela primeira vez, levei comigo uma bagagem cheia de leituras quadradas das quais eu queria me distanciar, mas também levei uma série de preconcepções que eu carregava sobre o que é ser nipodescendente no Brasil, esperando que Felipe – e talvez todas as pessoas nipodescendentes – se identificassem com a minha ideia de nipodescendente. A realidade é que, depois de três anos de pesquisa, percebo que as maneiras de ser, viver e estar no mundo, de enxergar, de experienciar são inúmeras, que não cabem em qualquer tipo de categorização ou explicação. Isso porque ser nipodescendente é apenas uma definição daquilo que somos, e ainda assim essa definição passa por infinitas perspectivas.

Até mesmo encontrar um determinante comum entre todos/as os/as nipodescendentes é bastante difícil. Muitos poderiam dizer que o sangue é inquestionável para se “averiguar” a ascendência de uma pessoa. O governo japonês, no entanto, ainda que embasado no princípio de jus sanguinis – que reconhece a nacionalidade de uma pessoa de acordo com sua ascendência,não legitima pessoas nascidas fora do Japão como japonesas. Não somos japoneses/as como os/as japoneses/as nascidos/as lá, não temos os mesmos direitos, deveres, oportunidades. São incontáveis os relatos sobre experiências de nipodescendentes que foram trabalhar no Japão e perceberam, lá, o quanto eram brasileiros.

Bairro Liberdade, em São Paulo-SP, durante a tradicional feira que acontece aos finais de semana. (Fotografia de Victor Hugo Kebbe)

Para terminar, gostaria de trazer aqui uma experiência minha quando conheci o Bairro Liberdade, em São Paulo, pela primeira vez. O que percebi é que estar na Liberdade me deu uma sensação de familiaridade com a qual eu jamais estive habituada. Ao andar pelas ruas da Liberdade – o duplo sentido parece interessante –, experimentei uma sensação completamente nova de ordinarismo. Não se tratava simplesmente de estar entre uma maioria de pessoas que fisicamente se parece comigo – estar numa festa de família não faz com que eu me sinta mais uma na multidão. Tratava-se de estar dentro de um espaço em que muito do que estava exposto, à mostra, não me fazia sentido algum, nada ali cobrava de mim um (re)conhecimento, um comportamento, um modo de ser. Eu olhava ao meu redor e o que via era um amontoado de lojas, restaurantes, pessoas completamente diferentes de tudo que eu já havia visto. E esse sentimento de não saber – e principalmente não precisar saber – o que significavam aqueles objetos, frutas, escritos era um alívio.

A leveza que eu sentia naquele momento foi o que me fez perceber o peso que eu carregava até então sem saber, porque pela primeira vez eu não o sentia por sobre os meus ombros.

Semáforo da Rua Galvão Bueno com a Rua dos Estudantes. (Fotografia de Victor Hugo Kebbe)

Explico. É que a todo o momento sou indagada – e imagino que muitos/as dos/as leitores/as aqui passam por isso – sobre como comer com “pauzinhos”, sobre a diferença entre shimeji e shitake, sobre como escrever o próprio nome em japonês, sobre qual peixe se faz sashimi, sobre as gueixas, a yakuza. Existe uma expectativa sobre mim por ser descendente de japoneses/as de que eu domino ou deveria dominar todos os aspectos daquilo que se entende por “cultura japonesa” no Brasil. São as expectativas da “caixa”, que eu carrego para lá e para cá na possibilidade de precisar usá-la, e nela está um conjunto de saberes, técnicas, modulações corporais, comportamentais que eu preciso deter.

Entretanto, até andar pelas ruas da Liberdade e ter a sensação de liberdade de me ser, não poderia saber onde as arestas da caixa começavam e onde terminavam. Andar pelas ruas da Liberdade me fez enxergar a caixa pela primeira vez. Porque pela primeira vez eu não sentia a caixa.

Pela primeira vez eu não sentia as expectativas que recaem sobre mim por ser nipodescendente – expectativas estas que muitas vezes os/as teóricos/as tentam explicar e acabam por reificá-las. Quando saí do estúdio de tatuagem de Felipe com aquela sensação estranha, eu havia jogado todas as minhas expectativas sobre ele, que não se concretizaram. Isso porque, ainda que nipodescendente, Felipe é uma pessoa complexa – como somos todos nós, seres humanos –, cheia de experiências de vida, de histórias, narrativas, sentimentos, emoções, e ao tentar enquadrá-lo, enxergá-lo por uma única perspectiva eu acabava perdendo muito, não só para o âmbito acadêmico, da pesquisa, mas também no sentido social, de convivência, de compartilhamento.

Imagine só o quanto perdemos das pessoas, todos os dias, quando as enquadramos naquilo que esperamos de japoneses/as, negros/as, mulheres, pessoas idosas...

 

© 2018 Paula Sayuri Yanagiwara

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About the Author

Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com mestrado também em Antropologia Social no qual desenvolveu pesquisa sobre os processos de construção de diferenças entre tatuadores/as descendentes de japoneses/as no Brasil, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Faz parte do Grupo de Estudos Japoneses do Laboratório de Estudos Migratórios (LEM-UFSCar). 

Atualizado em março de 2018

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