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Erica Kaminishi: Apresentando uma Identidade do Nikkei Brasileiro através da Arte - Parte 2

Segunda temporada Japao. Viagem a Magome, 2005

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Mais tarde, você retornou ao Japão como estudante de pós-graduação e permaneceu por muitos anos trabalhando, expondo e estudando formas tradicionais (cerâmica) e formas contemporâneas (vídeos e artes visuais). Quais foram algumas das grandes lições que você tirou ao estudar no Japão, artisticamente e pessoalmente?

Voltar ao Japão como pós-graduanda, possibilitou-me enxergar o país e a sua cultura com outros olhos. São duas situações em “dois” países bem diferentes: como trabalhadora imigrante e outra como estudante estrangeira. O tratamento dado muda de acordo com a sua posição social... Bom, isto acontece em qualquer lugar!

Mas estas duas experiências me tornaram mais realista em relação à cultura local e às minhas origens também. Através do estudo formal pude compreender certas práticas e rituais herdados, o comportamento e o pensamento dos meus pais, avós; compreendê-los e não julgá-los, pois a geração mais nova costuma apontar o dedo para o que é antigo e ultrapassado.

Mas o maior aprendizado, acredito que tenha sido desmistificar, descontruir toda a ideologia que gira em torno da cultura japonesa. Hoje consigo observar os dois lados e isto só é possível quando convivemos/confrontamos a realidade local e a estudamos também.

Sua família ainda está no Brasil? Você acha que eles se identificam como brasileiros Nikkeis? E você?

Sim, eles moram no Brasil. Hoje, meus pais se consideram nikkeis. Até a ida ao Japão, eles se consideravam japoneses. Meu pai possui dupla nacionalidade. Mas acredito que a permanência deles no Japão foi muito mais difícil que a minha, o choque cultural foi muito mais complicado. Pois eles cresceram e foram educados como japoneses e se sentem melhor conversando em japonês, mas no Japão eles eram apenas imigrantes brasileiros, no mesmo nível que gaijin, palavra pejorativa que escutei a infância toda para designar todos que eram de fora. É uma questão de experiência mesmo, de sentir na própria pele. Hoje, quando eles se referem a algum nikkei como nihonjin, logo percebem e corrigem a fala.

No meu caso, sim, mesmo porque é visível! Minha fisionomia e meu nome não me deixam fugir da definição. Mas na minha opinião, esta questão de se identificar como nikkei ou não, algo bem pertinente no Brasil, é uma questão pessoal e de experiência. A definição de identidade só se torna relevante ou uma problemática na vida de uma pessoa quando há um confronto real em um ambiente diferente ou em uma situação nova.
 

Você tem uma história que possa compartilhar sobre como a arte tornou-se parte de sua identidade (tanto quando criança como adulta)?

Formatura do Mestrado na Nihon University, Japão, 2009.

Durante o mestrado, por exemplo, tive aulas de folclore tradicional japonês, e cada aula era sempre um retorno à infância, um déjà-vu através das estórias e músicas infantis japonesas que a minha mãe nos contava. Esta sensação de lembranças imaginárias esteve muito presente nesta segunda temporada no país. Talvez pelo fato de estar mais consciente culturalmente. Uma vez, estava viajando com o meu marido na região de Shizuoka, perto do Monte Fuji. Era a minha primeira vez naquela região. Resolvemos visitar uma cachoeira local, que é bem famosa, a Shiraito Waterfalls. Logo quando chegamos ao pé da cachoeira, eu a reconheci imediatamente.

Mas era uma sensação estranha, de reconhecê-la sem saber de onde. E somente depois, no caminho de volta, lembrei a “minha” cachoeira de infância, que na verdade era um pôster bem grande de Shiraito meio esverdeado, decorando a sala de casa. No pôster, havia a imagem de um homem e eu lembro que ficava criando estórias e imaginando enredos para aquele lugar. Depois deste “reencontro”, desenvolvi uma série de desenhos intitulados Views of Fuji, na qual faço uma referência direta aos Monte Fuji de Hiroshige e Hokusai, e reconstruo o meu Fuji utilizando colagens de mapas cartográficos da região e poemas do Fernando Pessoa:

“Cantava em uma voz muito suave, uma canção de país longíquo
A música tornava familiares as palavras incógnitas
Parecia fado para a alma, mas não tinha com ele semelhança alguma...”

Então, de certa forma, meus trabalhos estão diretamente ligados às minhas experiências pessoais, mesmo porque não sei se conseguiria produzir algo que não tivesse esta conexão física e emocional.

E resgatar estas referências da cultura japonesa e trazer para o meu trabalho é como investigar, (re)descobrir o verdadeiro sentido das coisas, que há tanto se perderam. Para mim, é como ser uma arqueóloga da minha própria história e memória.
 

Você debateu em seu questionário que muitos dekasegis Brasileiros Nikkeis trazem com eles uma bagagem cultural (assim como penso que ocorre com todos os Nikkeis quando vêm ao Japão e vivem por algum tempo). Você viveu em uma comunidade grande de dekasegis no Japão?

Não, mas visitei diversas vezes algumas cidades com grande concentração de nipo-brasileiros como Nagoya, Oizumi, Kawasaki... Fui diversas vezes a Nagoya para participar de exposições. É interessante visitar estas cidades e os bairros onde se concentra o comércio voltado para a comunidade. As lojas com nomes brasileiros, a bandeira verde e amarela...

Primeira temporada Japão. Festival Brasileiro em Oizumi, 1999


Você poderia falar mais sobre isso ou dar um exemplo de ter visto o Nikkei trabalhando através das complexas camadas de nostalgia e construindo suas próprias experiências culturais?

Eu não sei dizer como ou se os nikkeis que estão no Japão assimilam suas origens nikkei na construção de suas experiências culturais, como é o meu caso. O que eu percebo é que através do confronto/vivência direta com a cultura japonesa há os dois extremos: muitos se reconhecem como sendo totalmente brasileiros e enfatizam os símbolos nacionais: bandeira, comida, língua, música brasileira, etc. ou se adaptam totalmente à cultura local e se tornam "japoneses" como uma forma de serem aceitos na sociedade. Esta é a minha impressão, mas a comunidade brasileira no Japão é grande e acredito que há uma diversidade cultural assim como há no Brasil.


Estou fascinada com o quanto você incorpora texto em seu trabalho (e com canetas, manuscritos!). Eu também li algumas poesias do Pessoa, traduzidas para o inglês. Estou curiosa se você tem algum pensamento que deseja compartilhar sobre idiomas? Você é claramente multilíngue e pergunto-me como isso pode afetar seu processo às vezes.

Eu sempre brinco que a única língua na qual sou fluente é o Pidgin, porque a maior parte do tempo acabo misturando tudo. Nao vejo nenhuma vantagem nisto, para ser bem sincera... Como eu sou melhor em escrever do que falar (literalmente) a língua materna, que é o português, sempre foi muito importante para mim como uma forma de identificação. Acredito que isto seja fato para muitas pessoas, mas o português é a única língua na qual consigo me expressar sendo “eu mesma”. Uma outra língua, mesmo a pessoa sendo fluente, exige uma postura física e social diferente da língua materna, e a sensação quando falamos esta outra língua é de sermos outra(s) pessoa(s)...

Então, partindo desta dificuldade de me comunicar verbalmente, a escrita sempre foi um meio mais evidente para mim como forma expressiva. E quando voltei para o Brasil, depois da primeira temporada de 4 anos fora, escrever diários/desenhos foi uma forma que encontrei para canalizar todas as experiências e tornar a readaptação mais fácil. A escrita de certa forma é uma terapia, e escrever repetidas vezes durante horas não deixa de ser uma meditação, como no Shakyo.

Uma das primeiras premiações em salões de Artes Plásticas. Curitiba, PR, 2003


Como é o seu ambiente de trabalho e vida em Paris? Você leciona além de criar e exibir trabalhos? Como é o seu trabalho e os conceitos recebidos com esse público?

Morar na França nunca esteve em meus planos. Certas coisas - se isto é destino não sei -, acredito que são traçadas especialmente para cada um de nós. Mas a forma como transformamos todas estas experiências depende de cada pessoa... Meu marido é francês e nos conhecemos no Japão. Nos mudamos para cá no final de 2010 e moramos em uma região multiétnica, na região de Seine Saint Denis, onde a língua francesa é quase como uma segunda língua. Mas é conveniente pois fica bem próximo ao trabalho dele. Morar em uma região como esta, que é a banlieue para os franceses, longe do centro de Paris, fez-me muito mais consciente em relação às minhas origens. O debate político sobre a imigração, dos guetos, das fronteiras raciais tornou-se algo muito mais consciente e vivo em mim, pois esta é a minha realidade, atualmente. Acredito que os franceses são politicamente mais conscientes, abertos e diretos ao debate. Lógico que há todas as sortes do mundo por aqui, mas estar em ambiente como este, trouxe mais senso crítico e reflexão ao meu trabalho.

Eu nunca expus nada na França, sempre senti-me um pouco afastada do cenário artístico contemporâneo francês, que tende ao conceitual. E por estar morando em uma região um pouco afastada do centro, fico um pouco isolada de tudo. Socialmente é ruim, mas artisticamente, consigo me concentrar, assimilar e refletir melhor sobre a minha produção. Não conseguiria produzir e focar no trabalho se tivesse muitas distrações.


Você trabalhou com a curadora Michiko Okano para escolher a peça na exposição? Você teve uma conversa sobre quais peças poderiam ser as melhores para usar nesta exposição específica?

Sim, trocamos inúmeros emails e conversas online. A princípio, pensamos em expor o meu trabalho Jardim, uma instalação que reproduzia o jardim de pedras japonês com a qual recebi o Prêmio de Arte Contemporânea da Fundação Nacional de Artes no Brasil. Mas estudando os espaços do museu, propus um projeto inédito que estava guardado há anos e nunca tive a oportunidade de expô-lo, pois grandes instalações como Prunusplastus exigem muito planejamento técnico e apoio financeiro também. E acredito que os dois trabalhos que a Michiko escolheu, Clouds e Prunusplastus foram perfeitos para esta exposição no JANM.

Yes, we exchanged many emails and talked online. At first, we thought about exhibiting my Jardim work, an installation that reproduced a Japanese stone garden, and which won the National Foundation of Arts in Brazil Contemporary Art Prize. But after we studied JANM’s exhibition spaces, I proposed that we show a previously unexhibited project that I’ve kept for years and never had the opportunity to show, largely because large installations like Prunusplastus require a lot of technical planning and financial support as well. I believe the two works selected by Michiko, Clouds and Prunusplastus, were perfect for this exhibition.


O que significa para você ser incluída em uma exposição de artistas Nikkeis?

Até chegar em LA e conhecer pessoalmente o JANM, não tinha idéia da dimensão do projeto, da proposta curatorial... Sabia que o JANM é um museu histórico, mas até conhecer toda a sua história, a história dos nikkeis americanos, não tinha consciência de tudo envolvido... Eu tinha conhecimento dos fatos históricos ocorridos na Segunda Guerra Mundial, mas foi muito mais intenso e impactante ver o acervo de perto, conhecer voluntários e descendentes que foram mandados para os campos. E conforme fui participando do dia a dia de toda a equipe do museu e conhecendo outros artistas nikkeis de outras nacionalidades, pude compreender a importância de um projeto como este! Não apenas pelos seus aspectos antropológicos, mas também pelo seu senso poético e também o que isso significa para o Nikkei. Fazer parte dele, provavelmente, terá uma grande influência em meus futuros trabalhos.

Exposição New Art Brazil – Japan 2008, Yokohama Civic Art Gallery, Japão, 2008

* * * * *

Fronteiras Transpacíficas: a arte da diáspora japonesa em Lima, Los Angeles, Cidade do México e São Paulo
17 de setembro de 2017 - 25 de fevereiro de 2018
Japanese American National Museum, Los Angeles, Califórnia

Essa exposição examinará as experiências de artistas de ancestralidade japonesa que nasceram, cresceram ou vivem na América Latina ou em bairros predominantemente latino-americanos no sul da Califórnia.

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© 2018 Patricia Wakida

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About the Author

Patricia Wakida é a editora de duas publicações sobre a experiência nipo-americana, Only What We Could Carry: The Japanese American Internment Experience e Unfinished Message: the collected works of Toshio Mori. Nos últimos quinze anos, ela tem trabalhado como historiadora literária e comunitária, incluindo Curadora Associada de História no Museu Nacional Nipo-Americano, Editora Colaboradora do site Descubra Nikkei e Editora Associada do projeto Densho Encyclopedia. Ela atua em vários conselhos sem fins lucrativos, incluindo Poets & Writers California, Kaya Press e California Studies Association. Patricia trabalhou como aprendiz de fabricante de papel em Gifu, Japão e como aprendiz de impressão letterpress e encadernadora artesanal na Califórnia; ela mantém seu próprio negócio de blocos de linóleo e letterpress sob a marca Wasabi Press. É Yonsei, cujos pais foram encarcerados quando crianças em Jerome (Arkansas) e Gila River (Arizona), campos de concentração norte-americanos. Mora em Oakland, Califórnia, com seu marido Sam e Takumi, seu filho Hapa (nipo-mexicano), Gosei.

Atualizado em agosto de 2017

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