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SHINDO RENMEI, uma página sombria da imigração japonesa no Brasil

HISTÓRICO

Com a chegada do vapor Kasato Maru no Porto de Santos, em 1908, iniciava-se o ciclo da imigração japonesa no Brasil que, na década de 1940, chegou a corresponder a quase 200 mil imigrantes nipônicos.

A maioria dos imigrantes deixara o Japão, arrasada por grave crise econômica e social, em busca do Brasil, país novo e promissor, que oferecia a esperança de trabalho e da oportunidade de fazer fortuna em pouco tempo. Juntar dinheiro e voltar anos depois à terra nata em condições melhores e dar conforto à família era o objetivo da maioria.

A realidade encontrada no Brasil, entretanto, foi outra, muito diferente do sonho acalentado. Depararam com um país enorme em extensão, terra a perder de vista, porém, sem desenvolvimento nenhum. Verdadeira imensidão de matas e florestas, clima tropical, língua e costumes estranhos, alimentação, tudo muito diferente a que estavam habituados. Pior ainda, tiveram que se submeter a um regime de trabalho de quase escravidão. Foram trabalhar em grandes fazendas de café e algodão como colonos, em troca basicamente de alimentação e teto, sem outras vantagens. Um verdadeiro martírio.

Uma família de imigrantes

Família Mizobe, por ocasião da chegada ao Brasil, em 1927

Assim vivia a família de Ikuta Mizobe que, em 1927, desembarcara em Santos, com a esposa, Koto e mais 4 filhos – Miyuki, Aiko, Tadayuki e Takayuki - todos menores e praticamente sem estudo. Só ficara no Japão mais 1 filho, Naoyuki, de 9 anos que, por sua aplicação aos estudos, decidiram não levá-lo com os demais.

Mizobe-san, o chefe da família, tivera que sacrificar o emprego na Prefeitura local (Yamaguchionde trabalhava como escriturário, para ir em busca da Terra Prometida, o Brasil, onde o “verde virava ouro“, como se comentava naquela época, em meio a terrível crise pela qual passava o Japão.

Assim que chegou, a família foi designada para trabalhar em uma fazenda de café, na região denominada Mogiana, no Estado de São Paulo, onde permaneceu até ser transferida para uma outra fazenda, na região Noroeste do Estado, mas de propriedade de um “patrício”, conterrâneo japonês que chegara bem antes ao Brasil e conseguira adquirir a gleba. No final de década de 1930, Mizobe-san, a muito custo, conseguiu comprar uma pequena gleba de terra em Bastos, pequena cidade paulista com muita concentração de japoneses, para onde se mudou com toda a família, para se dedicar à lavoura. A família cresceu, chegaram mais 3 filhos, Tieko, Noriyuki e Yoshiyuki, elevando para 7 o total de filhos no Brasil.

Sr. Mizobea muito custo tirava do sítio o sustento da família até que, nos idos de 1940, foi convidado para assumir o cargo de diretor-gerente da Cooperativa Agrícola de Bastos, provavelmente por sua experiência administrativa no Japão e por ser uma das pessoas mais cultas da comunidade japonesa naquela região. Diziam que era um profissional dedicado e zeloso, comprometido com os destinos da Cooperativa, a ponto de sacrificar-se pessoalmente, abrindo mão de seu salário a favor dos empregados, quando a entidade passou por uma crise financeira, tendo que atrasar o pagamento dos compromissos. Era um dos primeiros a chegar e o último a sair, todos os dias, compenetrado que era ao trabalho.

Família Mizobe em Bastos (SP)


A vida em comunidade

Ao mesmo tempo que a comunidade japonesa passava a imagem de um povo dedicado, sério e trabalhador, era vista pela sociedade local com certa desconfiança, porque possuía hábitos muito diferentes dos brasileiros e de outros imigrantes estrangeiros. O fato de se organizarem em grupos fechados, demonstrarem pouco interesse em aprender a língua portuguesa e frieza e relutância no contato com os brasileiros e outros imigrantes, acentuaram a desconfiança contra eles, japoneses.
 

Explode a 2ª. Guerra Mundial

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial em 1939, a situação se agravou. O Japão estava ao lado da Alemanha Nazista, da Itália, enquanto o Brasil se alinhava com os EUA e demais Nações Aliadas. Três anos depois, em 1942, navios mercantes brasileiros foram afundados por submarinos alemães, obrigando o Brasil a decretar guerra contra os Países do Eixo. Ocorreu o rompimento das relações diplomáticas do Brasil com o Japão e a chegada de novos imigrantes japoneses foi proibida. Tiveram seus bens apreendidos, ficaram proibidos de se mudar, fazer reuniões ou viajar sem autorização do Governo. E também não podiam publicar jornais, nem ter programas de rádio, até o direito de falar na língua materna acabou sendo cassado. As cartas não mais chegavam aos nipo-brasileiros. Ou seja, informações sobre o Japão passaram a ser vedadas de forma total.

Os japoneses no Brasil sempre tiveram um espírito comunitário, em parte provocado pela dificuldade de adaptação a um país muito diferente sob vários aspectos. Buscaram se reunir em forma de associações e organizações de cunho social, cultural, beneficente e até político, sem nunca perder o espírito nacionalista, de amor à pátria, sempre muito forte entre eles.

E surge a Shindo Renmei

Foi nesse cenário que surgiu  Junji  Kikawa, com 67 anos, um ex-coronel do Exército Imperial Japonês, que morava naquela região da Alta Paulista. Em agosto de 1942, em consequência de um violento confronto envolvendo brasileiros e japoneses na cidade de Marília, no Estado de São Paulo, fundou a organização denominada SHINDO RENMEI(A Liga do Caminho dos Súditos, no idioma japonês ), um grupo nacionalista destinado a unificar a colônia japonesa em torno do Yamato Damashii, o espírito guerreiro japonês. A organização começou distribuindo panfletos que enchiam os patrícios de esperança na vitória, incentivando, em contrapartida, a crença deles no sucesso da guerra. Favorável até a uso de atos terroristas e sabotagens, os folhetos recomendavam a interrupção da produção de seda e hortelã, de responsabilidade dos produtores nipo-brasileiros, alertando que tais atividades favoreciam os EUA na fabricação de paraquedas (seda) e nitroglicerina (hortelã/mentol).  

Mas, foi quando ocorreu a rendição do Japão em 13/08/1945, que a SHINDO REINMEI mostrou a sua verdadeira face terrorista e sanguinária.

Com o término da Guerra muitos integrantes da Shindo Renmei recusaram-se a acreditar nas notícias oficiais sobre a derrota do Japão. Seus objetivos, então, passaram a ser: punir os “derrotistas”, divulgar a “verdade” que o Japão venceu a guerra e defender a honra do imperador.

Aos olhos da organização, a comunidade nipo-brasileira estava dividida em dois grupos:

Kachigumi ou “os vitoriosos”, que acreditavam que a guerra ainda estava acontecendo, ou que o Japão havia vencido. Eles eram a maioria dos membros mais pobres da comunidade, que ainda pretendiam retornar ao Japão.

Makegumi ou “os derrotados/derrotistas”, tratados de forma pejorativa de “corações sujos”, que aceitaram a notícia da derrota do Japão. Eles eram geralmente os membros mais bem posicionados socialmente e mais cultos da comunidade, que estavam mais informados e melhor adaptados à sociedade brasileira.

Acreditando firmemente que as notícias sobre a derrota e rendição do Japão eram inverdades, os “vitoriosos” fanáticos decidiram que tudo não passou de propaganda americana e passaram a divulgar “ a verdade”, através de uma rede de comunicação, jornais e revistas em japonês, que o Japão era o grande vitorioso.

Elaborou uma lista-negra com os nomes dos “makegumis” que deveriam morrer por alta traição ao imperador.

A sentença fatal adotada pela organização era precedida de carta enviada ao makegumi escolhido para morrer, recomendando o “seppuku” (suicídio compulsório), pois, desse modo, poderiam “recuperar a honra perdida”. Que se saiba, nenhum makegumi selecionado para morrer aceitou a macabra sugestão. Os que se recusaram foram executados com armas de fogo e, alguns, com espadas katana.

Os adeptos da Shindo Renmei incumbidos da execução, denominados “tokkotais”, eram jovens em sua maioria e justificavam a atitude tresloucada como “estrito cumprimento do dever”. Com isso, não se sentiam culpados.

Os atentados

Ikuta Mizobe, Primeira vitima da Shindo Renmei

A primeira vítima dos “tokkotais” foi Ikuta Mizobe, diretor-gerente da Cooperativa Agrícola de Bastos, a 460 km de São Paulo. No dia 15/08/1945, mesma data em que o imperador Hirohito assinou a rendição, Mizobe divulgou um comunicado aos seus funcionários confirmando que o Japão havia sido derrotado na guerra e fê-la de forma firme, mas desolado e triste, intimamente. Afinal, seu coração nunca foi “sujo”, sempre foi japonês, nunca renegara sua origem. Ao assinar aquele documento, Mizobe não imaginava que estava assinando sua sentença de morte. No dia 07 de março de 1946, ele foi covardemente assassinado em sua casa, de madrugada, com um tiro nas costas, quando saía do banheiro, que ficava na parte externa da casa. Deixou a viúva e mais 6 filhos, 2 já haviam falecido e os 3 mais novos, ainda menores de idade.

Nos dias que se seguiram, vieram os atentados contra o industrial Nomurae o ex-diplomata Furuya, ambos na capital paulista, pelos mesmos motivos, ou seja, traição à pátria.

Durante os 13 meses que se seguiram, entre janeiro de 1946 e fevereiro de 1947, a Shindo Renmei sacrificou a vida de 23 de pessoas e feriu outras 147, todas nipo-brasileiras. Nesse período, a polícia paulista prendeu mais de 30 mil imigrantes japoneses, sendo que aproximadamente 400 membros foram condenados a penas variáveis de prisão. E seus líderes e matadores tiveram a deportação decretada, sem nunca, entretanto, ter sido cumprida. Mas, naquela altura, ao menos, todos já tinham a certeza de que o Japão havia sido derrotado na 2ª. Guerra Mundial.

Feridas mal curadas

Décadas se passaram, mas ainda muitos membros da comunidade nipo-brasileira, principalmente os mais idosos, que vivenciaram ou tomaram conhecimento do tenebroso assunto, não se sentem à vontade para abordar o tema e alguns preferem enterrá-lo de vez.

Pode-se discutir os aspectos morais e sociológicos dos acontecimentos sob a luz daquele conturbado momento e assim como o caráter nacionalista do japonês, mas não se pode olvidar as feridas que os atentados deixaram nos familiares, que ficaram órfãos de um dia para outro, do seu provedor principal, na maioria dos assassinatos.

É o caso da Sra. Aiko, filha do Sr. Mizobe que à época do acontecimento, era recém-casada, com um filho de colo. Atualmente, prestes a completar 98 anos, Sra. Aiko guardou mágoa a vida toda e um ódio pelo assassino confesso. Só teve paz de espírito quando,mais ou menos 7 anos atrás, de forma inesperada, foi procurada pela filha e pela neta do algoz, que vieram, humildemente, pedir perdão pela atrocidade cometida pelo pai e avô. Só souberam do fato depois de adultas e confessaram que, também, só tiveram paz na alma quando conseguiram, afinal, localizar a Sra.  Aiko  e pedir perdão, em nome da família.

* O autor deste texto é neto do Sr. Ikuta Mizobe e filho primogênito da Sra. Aiko Higuchi.

 

© 2018 Katsuo Higuchi

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About the Author

Natural de Tupã – SP, nissei, formado em Direito com Especialização em Relações Trabalhistas. Durante 50 anos atuou como Executivo e Empresário na área de Recursos Humanos. Consultor Empresarial, é  também Colunista do Jornal Nippo Brasil.

Atualizado em junho de 2017

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