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Erica Kaminishi: Apresentando uma Identidade do Nikkei Brasileiro através da Arte - Parte 1

A artista Erica Kaminishi, nascida e criada em Mato Grosso, Brasil, é uma das centenas de milhares de dekasegis brasileiros Nikkeis que migraram para o Japão para trabalhar ou estudar, cem anos depois que seus antepassados ​​imigraram. Durante um período de dez anos, ela trabalhou, estudou cerâmica e participou de um programa de Doutorado no Japão. Ela agora mora e trabalha em tempo integral como artista em Paris, França, mas suas raízes como Nikkei brasileira e seu tempo no Japão tiveram claramente um impacto sobre o modo como ela vê e pensa.

A artista Erica Kaminishi e a curadora Michiko Okano na abertura da exposição Fronteiras Transpacíficas. (Foto por Todd Wawrychuk)

Kaminishi é uma dentre os treze artistas selecionados para participar da Transpacific Borderlands: a Arte da Diáspora Japonesa em Lima, Los Angeles, Cidade do México e São Paulo. A questão da identidade nikkei-latino-americana foi um ponto crítico na seleção dos artistas. Michiko Okano, curadora da seção Nikkei Brasileira da exposição, disse: "É importante compreender a diversidade dos artistas e verificar que diferentes sensibilidades são desenvolvidas dependendo de vários fatores - as singularidades de cada artista, suas experiências artísticas e suas experiências de vida."

A curadora Okano incluiu duas peças de Kaminishi: a primeira, uma série de topografias baseadas em texto, curvas suaves que surgem do papel, embelezadas com a poesia do célebre poeta Fernando Pessoa, que é minuciosamente executada à mão no pequeno script de Kaminishi em tons de joias e a segunda, uma instalação que imersa o visitante em um banho de emoções. Desde que a exibição começou em outubro, vi inúmeras fotos do espetáculo que ela criou dentro da galeria - uma sala com 3.300 placas de petri transparentes penduradas, preenchidas com 60.000 flores rosa-claro sintéticas, para imitar o efeito de caminhar sob uma árvore de flor de cerejeira. A instalação em grande escala de Kaminishi, Prunusplastus (2017), é algo de um visual de país das maravilhas e, no entanto, a meditação sobre sua mensagem é realmente curiosa. "Prunus serrulata" é o nome latino para a cereja japonesa, enquanto "plastus" é latino para "algo modelado". De acordo com Kaminishi, a peça conceitua a natureza do DNA cultural de alguém através dessa lente quase científica. "No Japão, a celebração das flores desabrochando na primavera, como as famosas flores de cerejeira (sakura), é uma grande tradição. Eu queria reproduzir esta atmosfera de uma maneira contemporânea, enquanto examinava as formas que valorizamos e cultivamos a cultura... O trabalho toca o conceito japonês de ‘mono no aware’, que afirma que, embora a beleza seja muito tocante, também é efêmera, como tudo. Nada é eterno."

A seguinte entrevista por e-mail com Kaminishi é apenas o início de um inquérito sobre o papel da arte interpretando a história e a cultura dos imigrantes japoneses. Isso me deixou aberta para reimaginar minha própria abordagem de palavras, símbolos e identidade. A cultura Nikkei está inserida dentro de nós. A cultura Nikkei é artificial. A cultura Nikkei é uma ilusão, uma memória - talvez até mesmo apenas uma memória herdada que tenha sido descrita em um utensílio doméstico, no idioma ou em uma música distante.

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Patricia Wakida: Conte-me sobre a história da sua família ou o que você sabe. De onde seus antepassados ​​são originalmente? Onde eles se estabeleceram? Você acha que houve experiências específicas que tiveram um grande impacto em sua história pessoal?

Erica Kamanishi: Meus avós por parte de mãe e de pai são originários da província de Miyagi, no norte do Japão. Os avós maternos vieram com as minhas tias mais velhas ainda crianças. Eles se instalaram, primeiramente, no interior de São Paulo, como a maioria dos imigrantes japoneses no Brasil, e depois se mudaram para o norte do Paraná, na cidade de Assaí (que vem de Asahi), onde a maior parte da população são descendentes de japoneses. Há várias comunidades rurais nikkeis nesta região e meus avós se dedicaram ao plantio de café e algodão. No total, tiveram 13 filhos.

Os meus avós paternos se conheceram no Brasil. Minha avó veio com os irmãos mais velhos. Talvez tenha sido "obrigada" a emigrar uma vez que somente famílias podiam viajar. Eles se instalaram no interior de São Paulo e ela se casou com o meu avô em um casamento arranjado, por miai como a maioria dos casamentos japoneses. Depois se mudaram para a comunidade rural Cabiúna, em Assaí, onde adquiriram um sítio.

Meu pai conta poucas histórias, pois meu avô morreu jovem, quando meu pai tinha apenas 12 anos. Mas eu sei que meu avô emigrou com o irmão, meu tio-avô e a mãe, minha bisavó. Ambos eram os filhos mais novos da família e não tinham direito sobre a herança reservada ao filho mais velho (chonan). O único bem que possuíam era a armadura de samurai do avô (meu tataravô) e a venderam para poderem emigrar. Segundo meu pai, este tataravô imigrou para a região de Miyagi com o fim das castas na revolução Meiji. Adquiriu muitas terras e a familia era razoavelmente abastada. Sei também que meu avô era o mais artístico da família; pintava, tocava shakuhachi e praticava a caligrafia (shodo). Até antes do grande terremoto de Miyagi em 2008, se eu não me engano, a família do meu tio-avô que ficou no Japão possuía em sua casa pinturas feitas pelo meu avô. Com o terremoto, tudo foi destruído. E no Brasil, as poucas memórias que meu pai possui do meu avô, são de vê-lo pintando nos dias que chovia e não podia trabalhar. Quando ele morreu, minha avó, talvez pela situação do momento, queimou todos os seus trabalhos.

Acredito que o maior impacto tenha sido a vinda ao Brasil e a morte prematura do meu avô. Tanto meu avô como meu pai não tiveram a oportunidade de desenvolver suas habilidades artísticas. Meu pai precisou trabalhar desde muito cedo e não pôde continuar seus estudos. Mas sempre foi um exímio artesão. Até hoje cria objetos e brinquedos de madeira com materiais reciclados. Talvez eu tenha herdado isto deles.

Associação Nikkeis Uberaba, Minas Gerais, 1989 (eu de meia calça branca e meu pai de óculos escuro)


Eu sei que seus pais comem comida japonesa em casa, são budistas e falam uma mistura de português e japonês com as crianças. Conte-me mais sobre a comunidade maior onde você cresceu. Sua família fazia parte de uma comunidade brasileira Nikkei? Como era isso, a partir de sua perspectiva?

Primeiro dia de aula em Uberaba, Minas Gerais, 1986

Quando somos crianças, até mesmo depois de adultos, achamos natural a cultura familiar na qual estamos inseridos. Vivemos em uma espécie de cápsula do tempo. Mas estas questões só se tornaram relevantes quando meus pais foram para o Japão trabalhar e depois, quando eu fui para o Japão e percebi que o Japão real não era como o Japão de casa. Meus pais passaram a maior parte de suas vidas em comunidades fechadas no interior do Paraná. Na região de Assaí, na cidade onde eles cresceram, há diversas comunidades rurais divididas por seções: Seção Cabiuna, Seção Palmital, etc... Ainda hoje estas comunidades são ativas, e visitá-las é como um retorno ao passado... Seja qual for a casa, eles guardam souvenirs do Japão, fotos da visita de algum membro da família imperial, há sempre um cheiro de incenso no ar, o altar budista (butsudan) ainda tem lugar privilegiado na casa. É um contraste entre este ambiente que remete à cultura japonesa – um ambiente feito de memórias -, e a paisagem tropical do interior do Brasil, que é marcada pela terra bem vermelha.

Minha mãe aprendeu o português somente após ter se mudado para a cidade, logo quando se casou. Ainda hoje fala termos que só existem na cultura nikkei, mesmo tendo morado no Japão por muito tempo durante a década de 90. Usa termos como yo-ra (yo de eu no aspecto mais antigo e formal da língua japonesa) e você-ra, kimono para roupa, ofuro para tomar banho. Meus pais ainda preservam tradições como, por exemplo, preparar certos pratos como sekihan somente em ocasiões especiais. E ainda hoje preparam o próprio tofu, tsukemono, dashi em casa... E até há pouco tempo, um monge budista ia até a nossa casa uma vez por ano para orar em nosso altar.

Infância em Uberaba, Minas Gerais, 1987

É interessante e engraçado em alguns aspectos, mas mostra como os nikkeis da geração deles mantém viva a cultura dos antepassados; a cultura japonesa rural que já não existe mais no Japão contemporâneo. Na verdade, do meu ponto de vista, estas tradições foram herdadas, porque meus pais foram conhecer o Japão somente depois de adultos, com quase 50 anos. E alguns tios e tias nunca visitaram o país. É uma cultura de herança, onde se cultiva um Japão imaginário.

Você teve uma variedade de experiências de vida, incluindo viver no Japão como dekasegi, trabalhando em uma companhia telefônica. Primeiramente, por que você decidiu ir ao Japão?

Eu tinha acabado de terminar o ensino médio e entrado para a faculdade de História, na universidade local em Londrina, no Paraná. Meus pais tinham voltado para o Brasil naquela época, após alguns anos trabalhando como dekasegi no Japão. E a minha irmã mais velha, que também foi para o Japão com eles, estava no Brasil e queria voltar para o Japão para continuar os estudos. Ela queria tentar uma faculdade japonesa. Decidi ir junto pois ela tinha morado e estudado em Tóquio, tinha conhecidos que poderiam nos ajudar. E eu tinha outra irmã, a mais velha de todas, casada, que estava no Japão naquele momento trabalhando também. Então, estava de certa maneira sob a tutela das minhas irmãs, como sempre foi, desde os 10 anos, quando meus pais foram para o Japão e fiquei no Brasil para continuar os estudos.

O início no Japão foi muito difícil, trabalhei em muitos ambientes e em diversos locais. No último ano no Japão, parei de estudar japonês pois vi que o currículo brasileiro me impedia de tentar uma vaga em uma faculdade japonesa. E fui estudar artes por conta. Fiz curso de cerâmica e depois com as economias fui para Londres estudar inglês e conhecer a cultura local. Eu precisava ter conhecimento de base, e em Artes a cultura em geral sempre foi muito eurocêntrica, por isto escolhi Londres.

Primeira temporada Japão. Festival de cerâmica em Mashiko com a minha amiga, Eugenia, 1999.


Foi a sua primeira vez no Japão? Como era o trabalho? Você achou comunidades no Japão? Conheceu alguma família?

Sim, foi a primeira vez. Naquela época, isto há 20 anos, havia diversos níveis de trabalho como dekasegi, que ia da linha de fábrica até serviços de escritório, que geralmente se concentravam na região de Tóquio. Meus últimos trabalhos neste período foram em empresas de telefonia brasileiras e eram sempre ambientes bem internacionais, com chineses, filipinos e brasileiros trabalhando juntos. Trabalhava no Call Center para atendimento em português. Estudava de manhã e à tarde, e trabalhava de noite, no período em que os clientes voltavam para casa e ligavam para a empresa. Fiz boas amizades que mantenho até hoje. No meu último ano no país, minha mãe se juntou a nós. Na família, o ir e vir sempre foi algo constante e até hoje temos uma certa urgência de movimento e mudanças.

Talvez pelo fato de ter a família e amigos estrangeiros por perto, e também pelo fato dos japoneses nesta idade estarem frequentando o ambiente universitário, não tive muitos amigos japoneses. Praticamente, passava o dia todo só com estrangeiros, da escola de japonês ao trabalho. Interessante é que tive maior contato com jovens japoneses quando estava em Londres...

Primeira temporada Japão. Festa com colegas da empresa na qual trabalhava, Brastel 1998


Você tem uma história específica para compartilhar que descreva essa experiência?

Por ser brasileira e ter sido educada no Brasil, os códigos sociais japoneses sempre foram muito difíceis de serem “decifrados”. Aprendi através da observação e por muitos “tropeços" como me comportar socialmente, embora acredite que eu nunca conseguirei compreender totalmente as nuances da pausa, do silêncio, dos movimentos do corpo.

Não me lembro de algum fato marcante, mas eu sempre lembro dos “puxões de orelha” dados por professores ou algum japonês mais velho, explicando que eu não deveria dizer tal coisa, me comportar de tal maneira porque aquilo não era apropriado.

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Fronteiras Transpacíficas: a arte da diáspora japonesa em Lima, Los Angeles, Cidade do México e São Paulo
17 de setembro de 2017 - 25 de fevereiro de 2018
Japanese American National Museum, Los Angeles, Califórnia

Essa exposição examinará as experiências de artistas de ancestralidade japonesa que nasceram, cresceram ou vivem na América Latina ou em bairros predominantemente latino-americanos no sul da Califórnia. 

Para mais informações >>

 

© 2018 Patricia Wakida

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About the Author

Patricia Wakida é a editora de duas publicações sobre a experiência nipo-americana, Only What We Could Carry: The Japanese American Internment Experience e Unfinished Message: the collected works of Toshio Mori. Nos últimos quinze anos, ela tem trabalhado como historiadora literária e comunitária, incluindo Curadora Associada de História no Museu Nacional Nipo-Americano, Editora Colaboradora do site Descubra Nikkei e Editora Associada do projeto Densho Encyclopedia. Ela atua em vários conselhos sem fins lucrativos, incluindo Poets & Writers California, Kaya Press e California Studies Association. Patricia trabalhou como aprendiz de fabricante de papel em Gifu, Japão e como aprendiz de impressão letterpress e encadernadora artesanal na Califórnia; ela mantém seu próprio negócio de blocos de linóleo e letterpress sob a marca Wasabi Press. É Yonsei, cujos pais foram encarcerados quando crianças em Jerome (Arkansas) e Gila River (Arizona), campos de concentração norte-americanos. Mora em Oakland, Califórnia, com seu marido Sam e Takumi, seu filho Hapa (nipo-mexicano), Gosei.

Atualizado em agosto de 2017

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