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Paladar

Meus avós, Kameji e Katsuko Yokoyama

Mesmo ainda muito criança, cheguei fácil a essa conclusão: a casa dos meus avós maternos era tão diferente das outras que eu conhecia – até então – que, quando eu estava nela, era como se eu estivesse num outro plano.

E os motivos para essa impressão eram vários:

Os adultos – meus avós, meus pais e meus tios – só falavam entre eles em japonês. Os jornais e livros do meu ditchan eram todos escritos em japonês. Os musicais que minha batchan assistia também, japoneses. Os enfeites espalhados pela casa – vasos, quadros e bonecas – eram do Japão. Os brinquedos e gostos dos meus primos também, japoneses. E, principalmente: no café da manhã, no almoço e na janta, a comida era toda japonesa.

Minha batchan, excelente cozinheira, fazia os mais diversos pratos. E eu, bom de garfo – e de hashi – que sou, comia tudo o que me colocavam na frente; mesmo sem ter a mínima ideia do que estava mastigando e, principalmente, de qual seria o nome do que eu mastigava.

Claro que isso me colocou em situações que, para mim, eram surpreendentes. Como quando uma vez eu senti guelras se prenderem no céu de minha boca e descobri quê o que eu tanto mastigava era um pequeno tentáculo de polvo.

Outro momento curioso foi a vez em que eu estava na praia com meus tios e eles pediram para que nós, filhos e sobrinhos, pegássemos todas as conchinhas que ainda estivessem fechadas, com o molusco ainda dentro, e as colocássemos num balde. Foi nesse dia que eu descobri do que era feito um dos ensopados especiais da batchan.

Minha lembrança mais engraçada foi a vez em que um dos meus primos pegou um pedaço de daikon e o colocou, sem que eu percebesse, no bolso de minha bermuda. Por ainda não conhecer esse legume, fiquei bastante encucado com o cheiro forte que passou a me perseguir. Quando descobri o que era, meus primos deram muita risada. Mas eles também levaram bronca por terem brincado com comida.

E foi assim que essa parte do meu paladar foi formada: uma rica paleta de sabores orientais. Devo tudo isso, principalmente, à minha batchan – porque, claro, minha mãe, minhas tias e minha outra avó, também me ensinaram bastante.

Infelizmente, como eu nunca fui bom cozinheiro, não sei fazer quase nada da culinária japonesa. Mas, felizmente, como moro na Liberdade, em São Paulo, tenho a possibilidade de encontrar alguns dos sabores de minha infância em alguns cantos desse bairro. Assim, sem perceber, acabei criando um mapa afetivo do meu paladar.

Quando sou surpreendido ao encontrar pratos que tem sabor muito parecido com os da minha batchan (o sabor do inarizushi de um mercadinho, o tempero do sukiyaki de um restaurante e os ingredientes do tempura de uma barraquinha da feira), esse meu mapa ganha mais um xis. E o mercadinho e o restaurante e a barraquinha da feira, mais um cliente assíduo.

O ingrediente que eu mais tenho tido dificuldade de encontrar é o missô. Igual ao da batchan, me parece, vai ser difícil.

Mas, o que mais me faz falta ao paladar é o seu docinho de feijão, amanatoo; cujo preparo é extremamente difícil – não é para qualquer um. Os que eu encontro por aí não chegam nem aos pés do seu.

Enfim, precisei fazer esse mapa, porque, infelizmente, a idade chegou para a batchan. Com o tempo, ela foi parando de cozinhar. Hoje, já faz cinco anos que ela faleceu.

Nós – filhos, netos e bisnetos – temos certeza de que ela está no melhor plano possível. E que plano seria esse, caro leitor? Claro que nós não sabemos. Só temos a certeza de que esse lugar está agora bem mais saboroso com ela por lá.

Saudade, batchan!

© 2017 Hudson Okada

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Sobre esta série

Como a comida que você come expressa a sua identidade? Como a culinária ajuda a criar laços na sua comunidade e a unir pessoas? Que tipos de receitas foram passadas de geração à geração na sua família? Itadakimasu 2! Um Novo Gostinho da Cultura Nikkei revisitou o papel da culinária na cultura nikkei.

Nesta série, pedimos à nossa comunidade Nima-kai para votar nas suas histórias favoritas e ao nosso Comitê Editorial para escolher as suas favoritas. No total, cinco histórias favoritas foram selecionadas.

Aqui estão as histórias favoritas selecionadas.

  Editorial Committee’s Selections:

  Escolha do Nima-kai:

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About the Author

Udê, ou Hudson Okada, nasceu na cidade de Matão-SP, no dia 02 de agosto de 1979. Mora em São Paulo desde 2005. É neto de japoneses e adora escrever sobre a cultura nikkei.

Faz parte do time de colaboradores do site Descubra Nikkei e do site Tempos Crônicos.



Atualizado em abril de 2017

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