Descubra Nikkei

https://www.discovernikkei.org/pt/journal/2016/4/29/costume-em-extincao/

Um costume em extinção

Porta de um cinema em São Paulo. (Foto: Rafael Salvador)

Sou um nikkei sansei, que nasceu e cresceu em São Paulo e está na casa dos 35 anos. Na infância e adolescência, praticamente não convivi com a comunidade nikkei. O contato era apenas com familiares e alguns amigos. Não ia a eventos, não comia em restaurantes japoneses, não estudava japonês – três coisas que, alguns anos depois, eu faria muito.

Mesmo assim, naquela época dos anos 80-90, reparava uma coisa: entre os mais velhos (isei e nisei), era comum cumprimentar um nikkei desconhecido na rua. Cumprimentar apenas com uma leve reverência (no máximo, com um “konnichiwa”), sem nem mesmo parar de andar.

Meus pais faziam isso de vez em quando. Quando eu era criança, ao ver eles cumprimentando uma senhora na rua, perguntei:

– Quem era? É parente? – eles responderam que não era, mas também não souberam explicar exatamente por que cumprimentaram. Depois disso, peguei esse costume. O protocolo era assim: se houvesse um mínimo de contato visual, eu cumprimentaria.

O curioso é que havia uma espécie de limite de idade. O cumprimento acontecia apenas com os idosos, com os “jichans” e “bachans”. Entre os adultos mais jovens, a situação não parecia muito natural.

A interpretação que tenho é que os imigrantes ficavam contentes em encontrar nikkeis em um lugar em que são minoria. Para quem já nasceu e cresceu na sociedade brasileira, não é nada surpreendente encontrar alguém da mesma etnia entre tantas outras em um país tão miscigenado como o Brasil.


Kanji

Passei muitas vezes por uma situação sempre interessante, que é conhecer a família de amigos nikkeis. Os pais geralmente perguntavam sobre estudos e trabalho dos meus pais. Já os avós queriam saber o sobrenome e se eu sabia escrever o kanji da família. Eventualmente, apenas com esses dados, eles já identificavam a província; caso contrário, perguntavam também.

Desde criança, meus pais explicaram que meus avós nasceram no Japão e também me falaram o nome das províncias. Na época, eu entendia apenas que eram locais distantes. Com o tempo, fui descobrindo onde cada uma estava localizada no mapa do Japão, assim como quais eram as suas principais características.

Paralelamente, ilustrando com a história da família, contavam sobre a imigração. Assim, toda pessoa com traços orientais que eu via na rua, automaticamente considerava que era de família imigrante.

Na minha opinião, é fundamental que um nikkei saiba pelo menos essa parte da história da família. No mínimo, saber os passos que levaram seus ancestrais do Japão ao Brasil. Assim, costumo fazer as mesmas perguntas até para amigos que não são descendentes de japoneses. É interessante saber histórias de outras famílias imigrantes. Pelos contatos que tive até hoje, os italianos são os que mais se assemelham com os nikkeis, no sentido de saber a cidade de origem dos avós e cultivar tradições familiares.

Quanto a saber escrever o kanji, a história foi um pouco mais complicada. Conheci pessoas muito interessadas no kanji da família. “Como se escreve Minatogawa?” – perguntavam. Eu demorei um pouco para aprender a escrever direito. Já estava com 18 anos quando comecei a estudar japonês mais seriamente. Perguntei para o meu pai como era o kanji da família, então ele me mostrou um papel em que seu irmão mais velho havia escrito. Quando, infelizmente, tive que comprar um ihai (tabuleta memorial) para colocar no butsudan, o vendedor perguntou se eu sabia escrever o nome da família em kanji. É uma informação importante, mesmo porque “minato” tem duas formas de escrever.

Em conversas informais, ainda acho difícil entender quando as pessoas escrevem kanji no ar ou na palma da mão. Eu preciso escrever e visualizar no papel ou em alguma outra superfície.


Imigração

Hoje em dia, sei identificar com razoável precisão quando a pessoa é nikkei ou japonês que vive no Brasil – não são apenas imigrantes do Kasato Maru. Em geral, o modo de se vestir é bem diferente e acaba sendo o principal meio de identificá-los.

Com esse grupo, não costumo ter esse tipo de interação espontânea. Penso que eles já sabem que há muitos nikkeis no Brasil, então não é nenhuma surpresa encontrar algum na rua. Já tive breves diálogos com os chamados expatriados, mas coisas simples, como indicação de locais e outras informações pontuais.


Diferenças culturais

Construir algum tipo de relacionamento pessoal com orientais geralmente leva mais tempo que com um ocidental típico. O limite entre público e privado entre orientais é muito mais definido que em uma sociedade como a brasileira, por exemplo.

O jeito de ser do nikkei típico é mais reservado, sem muita gesticulação e tom de voz mais baixo – claro, há exceções, especialmente entre os mais jovens. Esse comportamento às vezes é interpretado no Brasil como timidez, desconfiança, arrogância, indiferença.

Penso que, por esse motivo, foi muito mais natural que os nikkeis convivessem entre si em associações e outros grupos. Isso também gerava críticas, cuja alegação era “japonês é muito fechado, só vive em comunidade”. Entendo isso como uma fase do processo de imigração, tanto que, hoje em dia, não são todos os nikkeis que frequentam associações nikkeis, e associações nikkeis têm muitos não descendentes entre seus membros.

Eu não tenho facilidade em puxar conversa, nem de fazer amizade em pouco tempo. É impressionante como algumas pessoas conseguem conversar com tanta desenvoltura com alguém que não conhecem, especialmente em ambiente de trabalho.

Por exemplo, há lugares que frequento há anos nos quais não sei o nome de ninguém. No meu entendimento, nunca houve brecha para uma conversa informal. Além disso, tenho a impressão de que isso pode atrapalhar a rotina da pessoa. Em outros casos, por algum motivo, as conversas surgiram mais naturalmente, mesmo entre não nikkeis. Provavelmente, houve compatibilidade entre o ritmo de cada parte.

Por outro lado, há uma situação em que os brasileiros são mais tímidos que os orientais. Em restaurantes japoneses, os não descendentes geralmente são mais resistentes para ocupar os lugares no balcão. É totalmente por falta de costume, já que o balcão, no Brasil, está mais associado a lanchonetes e estabelecimentos mais populares.


No Japão

No tempo em que estive no Japão, fiquei em cidades consideradas pequenas. Costumava sair sozinho para passear, quando, algumas vezes, encontrei a mesma situação de contato visual com alguém desconhecido.

Assim como aqui no Brasil, os mais velhos pareciam mais dispostos a cumprimentar. Ouvia frequentemente “Bom dia”, “Tempo bom, não é?” ou “Parece que vai chover”.

Nas situações em que uma conversa se desenvolvia, eu logo contava que era brasileiro. As pessoas falavam de carnaval, futebol e churrasco. Uma senhora mencionou as cataratas do Iguaçu. Creio que é natural um japonês saber apenas isso do Brasil. É a mesma coisa que a maioria dos brasileiros pensar em samurai, sushi e karate ao falar de Japão.

Uma das conversas mais memoráveis, ainda que rápida, que tive no Japão foi com uma senhora dentro do trem. Era uma linha de trens comuns. Eu estava em pé, perto da janela, para observar a paisagem. Já havia reparado nessa senhora, que estava a uns três passos de mim, com fisionomia fechada.

Subitamente, no horizonte, um trem-bala saiu do túnel, provocando um “oh!” e um sorriso na senhora. Ela percebeu que eu havia notado e disse “sumimasen”. Eu respondi “que bonito, não é?”. Ela concordou. Antes de descer, ela explicou que era seu modelo favorito de Shinkansen (o N500) e agradeceu por ter compartilhado aquele momento.


Outro lado

Essa identificação entre os nikkeis, essa aproximação natural, tem um lado menos amistoso.

No Brasil, como minoria étnica, o nikkei chama atenção e não temos como disfarçar. Recentemente, após fazer breve contato visual, uma senhora oriental se aproximou de mim. Pensei que ela me pediria alguma informação, como localização de rua, mas me pediu dinheiro, alegando que precisava comprar remédios para a filha. Ela falava muito baixo, mas não demonstrava constrangimento. Diante da minha negativa inicial, ela insistiu ainda uma vez.

No Brasil, é muito raro ver um nikkei em situação de mendicância, assim como não é comum haver nikkeis envolvidos com crimes. Assim, a tendência é confiarmos apenas por ser nikkei. Eventuais golpistas nikkeis podem facilmente aproveitar essa confiança.

Em outra situação, comprei um produto usado pela internet, algo que não costumo fazer. Como o vendedor era nikkei, confiei totalmente. Combinamos que a entrega seria pessoalmente. Para começar mal, o rapaz atrasou muito e nem pediu desculpas. Ainda confiando, nem abri a embalagem para conferir o produto. Quando cheguei em casa, não estava nas condições anunciadas. Entrei em contato com o vendedor, que não quis desfazer o negócio.

O prejuízo material não foi grande; pior foi a decepção. Foi ingenuidade, sim, confiar em um desconhecido apenas por ser nikkei. Pelo menos, aprendi a lição.


Integração

Na minha opinião, esses cumprimentos espontâneos entre nikkeis desconhecidos e a confiança imediata tendem a desaparecer, conforme a integração dos nikkeis na sociedade brasileira avança. Penso que ainda haverá um impulso natural de simpatia, mas que será logo interrompido pelas normas da sociedade em que se vive.

 

© 2016 Henrique Minatogawa

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About the Author

Henrique Minatogawa é jornalista e fotógrafo, brasileiro, nipo-descendente de terceira geração. Sua família veio das províncias de Okinawa, Nagasaki e Nara. Em 2007, foi bolsista Kenpi Kenshu pela província de Nara. No Brasil, trabalha na cobertura de diversos eventos relacionados à cultura oriental. (Foto: Henrique Minatogawa)

Atualizado em julho de 2020

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