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Anchieta: a ilha-prisão palco de inúmeras tragédias: Conflitos entre vitoristas e derrotistas resultaram em 170 prisões. A fonte ”Bica Shindo Renmei”

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A prisão federal de segurança máxima situada na Ilha de Alcatraz, Califórnia, Estados Unidos, ficou famosa por ser uma ilha-prisão de onde é impossível escapar e foi tema do filme “Alcatraz – Fuga impossível”, estrelado por Clint Eastwood (1979, direção de Don Siegel). Uma instituição que poderia ser considerada a versão brasileira de Alcatraz ficava na Ilha Anchieta, no litoral nordeste do Estado de São Paulo. E uma história oculta há por trás disso: logo após o final da Segunda Guerra Mundial, lá ficaram encarcerados nada mais nada menos que 170 imigrantes japoneses. No início de 2014, eu soube que uma fonte de água perto do antigo presídio foi batizada com o nome de “Bica Shindo Renmei” em homenagem à presença japonesa e, nos dias 22 e 23 de novembro do mesmo ano, visitei o lugar junto com um grupo de 35 pessoas da Associação Liberdade Aruko Tomono Kai.   

Casa de arquivos e o embarcadouro na Ilha Anchieta
 

A tragédia dos imigrantes búlgaros: 151 mortes em 100 dias

Por uma estranha coincidência, o presídio foi construído em 1908, no mesmo ano em que o navio Kasato Maru trouxe o primeiro grupo de imigrantes japoneses.

A partir de 1926, a Ilha Anchieta começou a receber 2 mil pessoas da Bulgária e da região que hoje se chama Gagauzia, dentre outros imigrantes oriundos do Leste Europeu. Eles que, além de sofrer por duas vezes as consequências da Guerra dos Balcãs, durante a Segunda Guerra Mundial viram suas terras devastadas e vieram para a América do Sul em busca de paz.

Porém, uma grande tragédia lhes aconteceu, explica Fabiano Teixeira, funcionário da Casa de arquivos do presídio. “Os 2 mil imigrantes búlgaros que se estabeleceram na ilha, na falta de outro alimento, comeram mandioca brava e um grande número deles morreu e os demais se retiraram do lugar”. Em apenas 100 dias, o fato de 151 pessoas perderem a vida é uma grande tragédia na história da imigração.

O mesmo funcionário acrescentou: “Parece que não conheciam o método de tirar veneno da mandioca”. E para homenagear o sacrifício dos ancestrais, seus filhos e netos foram à ilha em setembro de 2014 e afixaram na Casa de arquivos a lista dos nomes dos imigrantes falecidos na tragédia.

Relação dos imigrantes búlgaros falecidos

Um dos integrantes da caravana Aruko Tomono Kai, Harunori Tanaka (65 anos, de Hiroshima), observou com tristeza que nada havia em exposição com referência aos imigrantes japoneses.

Realmente, não existe nada exposto, mas há na ilha algo relacionado à imigração japonesa: a Bica Shindo Renmei. Vejamos do que se trata.


A ilha-prisão de onde é impossível escapar

Entre a ilha e a cidade mais próxima que é Ubatuba há uma corrente marítima muito rápida, sendo impossível chegar vivo em caso de fuga do presídio que foi construído na pequena ilha. E durante o regime do presidente Getúlio Vargas (a partir de 1930), era para lá que eram mandados os criminosos de alta periculosidade e presos políticos de todas as partes do país.

A partir de 1946, durante três anos, 170 imigrantes japoneses estiveram confinados nessa ilha-prisão. Na época, houve conflitos entre os nikkeis envolvendo os “kachi-gumi”, que acreditavam na vitória do Japão e os “make-gumi”, que reconheciam a rendição japonesa na Segunda Guerra Mundial, chegando até a ocorrer assassinatos. E dentre os vitoristas mais fervorosos havia a Shindo-Renmei, Liga do Caminho dos Súditos.

Cerca de dez pessoas que participaram efetivamente de assassinatos foram enviadas à ilha, como foi o caso de Tokuichi Hidaka, da ala extremista. Mas a grande maioria, constituída de dirigentes da sede da Shindo Renmei ou das filiais de cada localidade do Estado de São Paulo, foi submetida a interrogatórios pela Delegacia de Ordem Política e Social (atual DOPS). Como parte do processo, eles tiveram que pisotear o retrato do Imperador ou a bandeira do Japão como prova de negação dos valores japoneses, a exemplo do “Fumi-e” imposto aos cristãos do Japão (1628 a 1857), em que tinham que pisotear a imagem de Jesus Cristo como prova de rejeição do cristianismo.      

Somente pelo fato de possuírem extremistas na família, muitos foram presos e torturados ou pela Polícia de Ordem Política ou no presídio da Ilha Anchieta e, por conta disto, passaram a sofrer de distúrbios mentais e acabaram suicidando-se por envenenamento, como foi o caso de Fukuo Ikeda. 

Na ilha, os japoneses ganharam a confiança dos funcionários do presídio e tiveram permissão para comemorar o “Tenchosetsu” (aniversário do Imperador do Japão) e também realizaram o “Undokai” (gincana poliesportiva). Dentre as modalidades, havia até a “Fuga da cadeia” (Jornal Nikkey de 14/05/2014, Tokuichi Hidaka: História do exílio=encarceramento no presídio da Ilha Anchieta, capítulo nº11).

Atendendo aos pedidos dos presos brasileiros, foi até realizado um torneio mortal com cinco lutadores (o que chamam hoje de competição de artes marciais mistas), onde, segundo histórias da época, o lado japonês saiu vitorioso graças à participação de um grande mestre de judô (Hidaka, capítulo nº 12).

Havia uma espécie de cela secreta, sem janela, totalmente escura, com espaço para uma pessoa apenas, onde era colocado todo aquele que mostrasse resistência. “De lá um negro saía roxo” (Hidaka, capítulo nº 9). Um castigo era dado com um chicote especial feito do órgão reprodutor do boi: “Mais de dez chicotadas causavam danos mentais ou levavam à morte” (idem).

Ruínas do presídio


Documentários e filmes sobre o tema

Após a escalada de acontecimentos sangrentos que se sucederam na época, a comunidade nikkei permaneceu calada  por um longo tempo, não transmitindo nada às gerações posteriores.

Mas no ano de 2000 o renomado jornalista Fernando Morais publicou “Corações Sujos”, um livro-reportagem em que os fatos reais foram dramatizados de tal maneira que aguçou a curiosidade do público, contendo muitas partes que não correspondiam à realidade. Apesar disto, foi graças a essa obra que o episódio chamou a atenção da sociedade brasileira.

Como resultado, o filme “Corações Sujos”, baseado no livro de Fernando Morais e dirigido por Vicente Amorim, foi lançado em 2012 no Japão e no Brasil. Contando com um elenco de primeira com atores japoneses como Tsuyoshi Ihara, Takako Tokiwa, Eiji Okuda, é um filme brasileiro diferente, pois é quase totalmente falado em japonês.

Ocorre que, as gerações que até então nada sabiam sobre o episódio por falta de informação dos pais, começaram um movimento contrário ao constatarem que a organização Shindo Renmei foi retratada como um grupo terrorista. E foi assim que surgiu o filme-documentário “Yami no Ichinichi – O crime que abalou a Colônia Japonesa”, dirigido por Mário Jun Okuhara (http://www.nikkeyshimbun.jp/2014/140319-71colonia.html).    


A pior rebelião da história prisional do Brasil

Por volta de 1948, depois que os imigrantes japoneses foram libertados, o presídio da Ilha Anchieta ficou lotado de criminosos de alta periculosidade e prisioneiros políticos (principalmente os de esquerda). E em junho de 1952, houve um grande motim que resultou em 118 mortes (110 prisioneiros e 8 carcereiros), sendo considerado o pior motim da história prisional do Brasil Moderno. Isso repercutiu mundialmente e o presídio foi completamente desativado em 1955.

Este tinha sido o maior massacre da história prisional do Brasil até acontecer outro de igual proporção no maior presídio da América Latina, o Carandiru, situado na cidade de São Paulo, em outubro de 1992, que resultou na morte de 111 detentos.

Entre o tempo de permanência dos imigrantes japoneses (1948) e o motim na Ilha Anchieta (1952) há um intervalo de apenas 4 anos. Acredita-se que os carcereiros em sua grande maioria eram os mesmos. Embora o tratamento dado aos presos fosse igual, de acordo com o relato de Hidaka, a grande maioria dos imigrantes japoneses foi de prisioneiros exemplares.

* * * * *

O funcionário Teixeira disse surpreso: “É pela primeira vez que vejo um grupo de visitantes japoneses”. Como fica perto do Rio, que atrai turistas do mundo inteiro e dista apenas 160 quilômetros de Angra dos Reis, onde artistas e celebridades têm suas mansões, a Ilha Anchieta recebe cada vez mais turistas. Por ocasião da Copa do Mundo de 2014, grupos de turistas do Chile, da Holanda e dos Estados Unidos estiveram em visita à ilha.

A Bica Shindo Renmei fica a cinco minutos a pé do local onde era o presídio, ao longo da costa e quanto ao nome que recebeu, Teixeira disse não saber ao certo a data, mas tem certeza que foi uma forma de homenagear os imigrantes japoneses.

A fonte que recebeu o nome de “Bica Shindo Renmei”

Fiz então uma pesquisa e constatei que, pelo fato de o documentário “Yami no Ichinichi” ter sido filmado lá, isso atraiu a atenção de todos e, assim, o administrador da época Luis Bidetti batizou a fonte em março de 2014 com o nome de “Shindo Renmei”. Provavelmente é o único lugar existente no Brasil com esse nome tornado público.

O guarda Carlos Vacarine, 32, que hasteou a bandeira japonesa na última cena, afirmou que o filme foi muito emocionante e que a história da presença dos imigrantes japoneses ficou gravada nas imagens.


“Que triste, quero rezar uma missa”

Por conta dessa triste história, quando o grupo de visitantes desembarcou na ilha, alguém falou: “Finalmente, nós japoneses viemos apaziguar o espírito dos nossos conterrâneos”.

Hisae Yamuro, 72, sansei, cujo avô chegou no Ryojun Maru, o segundo navio que trouxe imigrantes ao Brasil, falou pensativa: “Aqui existe uma história muito profunda. O presídio ter sido construído no mesmo ano da vinda do Kasato Maru é coisa do destino”.

Fujie Takeuchi (73, de Fukui), ao se despedir da ilha, juntou as mãos em sinal de prece: “Sinto que o espírito das pessoas falecidas paira aqui. Queria prestar culto budista ou fazer uma missa em memória”.

Membros da Associação Liberdade Aruko Tomono Kai em visita ao Parque da Ilha Anchieta, no Estado de São Paulo

 

▼”Yami no Ichinichi”, filme-documentário que mostra os conflitos entre vitoristas e derrotistas, tendo Tokuichi Hidaka como centro dos testemunhos. Finalmente disponível no Youtube com legendas em japonês. Para quem se interessa pelo tema, é um filme que vale a pena assistir. Duração de 1h22m, direção de Mário Jun Okuhara, 2012. 


▼Tokuichi Hidaka, personagem principal de “Yami no Ichinichi” e seu relato do tempo que passou na Ilha Anchieta, em 14 capítulos.
http//www .nikkeyshimbun.jp/2014/140429-61colonia.html


▼No site do Brasil Imin Bunko estão disponíveis cerca de 150 volumes sobre dados importantes em PDF. Entre os quais, documentos sobre o encarceramento na Ilha Anchieta (Título original: “Gokuchu Kaikoroku” Trad.literal: “Memórias de dentro do cárcere”, manuscrito original de 1952 da autoria de Hekisui Yoshii). Yoshii era líder da Shindo Renmei filial de Lins e apresenta um ponto de vista diferente de Hidaka. 
http://brasiliminbunko.com.br/Obras/36.pdf

 

© 2015 Masayuki Fukasawa

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About the Author

Nasceu na cidade de Numazu, província de Shizuoka, no dia 22 de novembro de 1965. Veio pela primeira vez ao Brasil em 1992 e estagiou no Jornal Paulista. Em 1995, voltou uma vez ao Japão e trabalhou junto com brasileiros numa fábrica em Oizumi, província de Gunma. Essa experiência resultou no livro “Parallel World”, detentor do Prêmio de melhor livro não ficção no Concurso Literário da Editora Ushio, em 1999. No mesmo ano, regressou ao Brasil. A partir de 2001, ele trabalhou na Nikkey Shimbun e tornou-se editor-chefe em 2004. É editor-chefe do Diário Brasil Nippou desde 2022.

Atualizado em janeiro de 2022

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