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Filme antigo (2) - A Colonização Serra dos Dourados

Além das cenas descritas na Parte 1, este filme antigo contém cenas que têm uma profunda relação com o meu pai e a nossa família. Trata-se de cenas sobre o empreendimento que o meu pai dedicou sua vida e o fato desse velho filme se encontrar em meu poder, tem para mim um significado peculiar, que não posso deixar de pensar que não se trata de um mero acaso do destino. 

Família Miyamura em 1951. Meu irmão Hélio no colo, eu e minha irmã Dalva Yukiko.

Os meus pais foram morar na cidade de Apucarana no Estado do Paraná no ano de 1945. Meu pai tinha a profissão de protético dentário e atendia também, como dentista prático ambulante, visitando as comunidades japonesas nas colônias. Atuava também, como representante para o Paraná da revista “Hikari” editada pela ”ala vitorista” no pós-guerra. 

O seguinte incidente está relatado em seu diário. 

Certo dia, membros da “ala derrotista” fotografaram a placa Hikari aposta na entrada da nossa casa e entregou-a ao DOPS”. Meu pai foi preso e encaminhado à Delegacia de Londrina. Só saiu de lá, alguns dias depois, graças à ajuda de amigos. 

Estava desgostoso dessa vida incerta e procurava insistentemente por alguma coisa que lhe satisfizesse o sonho que tinha desde a infância – ser um grande empreendedor. Essa oportunidade surgiu quando ficou sabendo da existência de terras devolutas, de propriedade do Estado do Paraná, e tomou a decisão de executar um empreendimento de colonização nessas terras. 

Nesse filme antigo há uma cena em que meu pai lê, em frente ao túmulo de “Shuhei Uetsuka”, (1876~1935), - o pai da imigração japonesa no Brasil, - uma Declaração de Missão do Empreendimento. As cenas desse filme são de 1951 e aparece o início da Colonização Serra dos Dourados de 60.000 alqueires(*). 

Este empreendimento foi iniciado em 1948, autorizado pelo Governo do Estado do Paraná, e meu pai estava com 34 anos de idade. A mata era virgem e habitada por índios da tribo Xetás, que vinham procurar por milho nas plantações dos primeiros japoneses estabelecidos na colonização.  

Índios Xetás que habitavam a Serra dos Dourados

Porém, o empreendimento foi interrompido 4 anos após, quando as obras civis de abertura já estavam adiantadas e os primeiros agricultores estavam estabelecidos. 

Nas eleições gerais de 1951 o governador do Estado do Paraná, Moisés Lupion, apoiava o candidato do partido da situação do Presidente Dutra, o Ministro da Marinha, Almirante Eduardo Macedo. Obviamente o meu pai também estava alinhado nesta campanha. O candidato da oposição Bento Munhós da Rocha de família tradicional paranaense estava alinhado com Ademar de Barros do Estado de São Paulo que carregava a campanha do partido do opositor Getúlio Vargas. Após um ferrenho embate político, o candidato da situação, traindo todas as expectativas foi derrotado no pleito. Como conseqüência o empreendimento de colonização do meu pai sofreu o impacto direto da enorme pressão política acabando em paralisação. O projeto foi reduzido a menos de um terço do previsto. O restante foi parar nas mãos de um grupo de empreendedores apoiados por grupos do governo do Estado de São Paulo. 

Esta interrupção produziu uma grande questão política, com ataques recíprocos diários nas primeiras páginas dos jornais da Capital do Estado. O meu pai passou a sofrer também, ataques nos jornais de língua japonesa de São Paulo, sendo envolvido em questões entre “vitoristas” e “derrotistas”. A questão tomou proporções nacionais. 

Meu pai aos 71 anos anunciando a vitória na justiça

Possuidor de um temperamento muito forte, meu pai tomou em 1954, como último recurso, a decisão de mover ação indenizatória contra o Estado do Paraná. Com esta opção pelo caminho da justiça, deu-se o início de uma jornada  duríssima e sofrida, um verdadeiro calvário para a família Miyamura. 

A decisão judicial favorável de reconhecimento dos seus direitos só foi obtida 31 anos após, em 1985. Meu pai já estava então com 71 anos. Mas a sua luta ainda prosseguiu por mais dez anos, até o seu falecimento em 1995 com 81 anos de idade. Foi uma vida inteira de fé e perseverança de jamais desistir da luta, de um autêntico cidadão do Império japonês. 

Esta intricada questão que envolveu a Colonização Serra dos Dourados só se tornou mais clara quando, - muito tempo depois, - razões de natureza mais profunda vieram à tona. 

Nossos avôs pelo lado materno e a maioria dos imigrantes japoneses que vieram naqueles anos de 1930 chegaram aqui quando o país passava pela maior crise cafeeira. Sobrepunha-se a isso o fato de que as terras paulistas onde estavam os cafeeiros já estavam cansadas e não eram mais produtivas. A busca por terras mais férteis e apropriadas tanto para o café como para o algodão e outras culturas recaiu sobre o norte do Estado do Paraná, com a famosa terra roxa. 

Isso ocorreu na segunda metade dos anos 30 e início dos anos 40. Meu pai procurava com profunda obstinação por uma oportunidade para reproduzir nesse Estado, o exemplo de sucesso obtido por colonizações de imigrantes japoneses no Estado de São Paulo. 

A chance surgiu quando, por acaso ficou conhecendo um funcionário do Departamento de Geografia, Terras e Colonização, DGTC, de quem ficou sabendo do nome do Secretário do Governo. Meu pai escreveu de próprio punho, em japonês, seu Plano de Desenvolvimento de Colonização, contratou os serviços de tradução de um acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, chamado Kanayama, apresentado por um conhecido dos tempos quando morava em Santos. De posse desse documento e acompanhado pelo acadêmico, marcou uma audiência com o Secretário de Estado. Foi o início do empreendimento. 

Meu pai teve um encontro com o Governador Lupion e outros Secretários do Governo. Os membros do Governo estavam precisando de um projeto e a força de fé daquele japonês convenceu-os a bancar a idéia. Os próximos desdobramentos aconteceram com grande velocidade. É quase inacreditável que no ano de 1948, quando no Estado de São Paulo a Colônia Japonesa vivia os dias mais conturbados da sua história, meu pai tenha conseguido colocar em prática aquele seu sonho. 

Meu pai com os colonos em visita à Serra dos Dourados

Porém quando tudo encaminhava a pleno vapor rumo ao ápice do empreendimento, eis que surgiu um fato inesperado. 

A produção cafeeira paulista era transportada por via férrea para ser exportada via porto de Santos. Um grupo de investidores ingleses organizados em um sindicato de bancos investia em ferrovias brasileiras e tinham como direito de construção e exploração, a posse de até 30 km de cada lado das margens da ferrovia. Estas terras eram vendidas através de imobiliárias ligadas à administração da ferrovia. Esse formato de negócio tinha sido adotado na ferrovia que penetrava no norte do Estado do Paraná. Esta ferrovia ia até a cidade de Apucarana, onde nós morávamos. A Colonização Serra dos Dourados se situava cerca de 400 km mais adiante. 

O Estado do Paraná planejava escoar a produção de café e cereais, - colhidos nas mais férteis terras do norte do Estado  - por uma ferrovia própria a ser construída na região central do Estado, rumo ao porto do estado, Paranaguá..  Esse plano era frontalmente contrário aos interesses paulistas de Ademar de Barros. O empreendimento do meu pai estava na mira dos empresários e políticos de São Paulo. O Estado paulista era incomparavelmente mais poderoso do que o paranaense e não havia possibilidade de vitória política. 

A perda na eleição para governador do Estado do Paraná tinha sido um golpe fatal. Por decisão política o empreendimento acabou limitado em extensão, ao valor efetivamente já pago ao Estado. O restante passou para os empresários ligados ao Governo do Estado de São Paulo. 

Meus pais e minha irmã Dava (falecidos) em foto de 1990

É dessa forma que o empreendimento dos sonhos do meu pai se transformou em uma luta de trinta anos nos tribunais. Este filme antigo traz embutido no seu bojo o estigma de fatos dignos de registro. 

A emigração japonesa para o Brasil esteve interrompida devido à Guerra do Pacífico, entre o ano de 1941 e 1953. Conheci recentemente pessoas que se emigraram para o Brasil no pós-guerra, como membros da Cotia Seinen, - após o restabelecimento do regime migratório japonês ao país, - e se estabeleceram, na Colônia Serra dos Dourados. Justamente naquelas terras que um dia meu pai, quando ainda jovem, esboçou aquele grande sonho. 

Que estranha ironia do destino, assistirmos juntos a esse antigo filme, 65 anos após. Não posso deixar de pensar nas estranhas forças do acaso que governam o nosso universo.

Comissão de organização dos 60 anos de reinício da Imigração Japonesa. Alguns deles entraram na Serra dos Dourados em 1963,(3º da direita). Eu na extrema esquerda.

 

*Um alqueire corresponde a 24.200 m2.

©2013 Hidemitsu Miyamura

Brasil Dourados Paraná (Brazil)
Sobre esta série

Publicou em 2005 um livro de crônicas em japonês, com o título de Kagirinaku Tookatta Deai (限りなく遠かった出会い), coletâneas de matérias publicadas na coluna “Dokusha no room”,  no jornal São Paulo Shimbun. No livro constam episódios extraídos de um diário do seu pai com a jornada da sua vida. Falecido em 1995 com 81 anos, seu pai veio ao Brasil como imigrante em 1934 com 19 anos. Nesta série serão apresentados alguns episódios extraídos do livro.

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About the Author

Hidemitsu Miyamura, nascido em 01/01/1944 em Paraguaçu Paulista. Estudou japonês na infância em Apucarana no norte do Estado do Paraná. É engenheiro mecânico formado na Universidade Federal do Paraná. Trabalhou na empresa NEC do Brasil por 34 anos, retirando-se em 2001. Casado com a médica Alice, é pai de Douglas Hidehiro e Érica Hiromi. É autor do livro Kagiri Naku Tookatta Deai (限りなく遠かった出会い) publicado em 2005. Escreve crônicas no São Paulo Shimbun.

Atualizado em janeiro de 2013

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