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História nº 9: Quando floresce a sakura

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Shinji e Linda são amigos de infância. Mas isto não quer dizer que tivessem estudado na mesma escola e brincado no mesmo parque.

Quando estava com seis anos de idade, Shinji foi morar no Brasil por questões de trabalho do seu pai.

Sua mãe, que era pianista, logo abriu uma escola de piano para os filhos de funcionários de empresas japonesas no Brasil.

Shinji estudava na Escola Americana e tinha também aulas de inglês, violino e xadrez.

Era um domingo e sua mãe tinha um concerto de piano para ir e seu pai uma partida de golfe no clube. E Shinji tinha de decidir com quem ia junto e ele respondeu “Quero ir com o papai”. Mãe e pai ficaram surpresos com a pronta resposta do filho. 

Na volta do golfe, o carro percorria um caminho rente a um vasto campo. De repente, Shinji exclamou “Ah!” e pediu para o pai parar.

“É perigoso parar num lugar desses” – mas antes que o pai pudesse falar, Shinji estava com o rosto colado no vidro da janela, olhando maravilhado.

Quando seu pai estacionou um pouco à frente e olhou para o céu, viu que estava cheio de pipas coloridas de todos os tamanhos. E o campo cheio de crianças. Todas falando ao mesmo tempo, perguntando qual pipa voaria mais alto, torcendo e gritando para a sua favorita. Enfim, todo mundo unido num só coração.

Pai e filho olhavam à volta deslumbrados, como se estivessem num mundo diferente. Nisto, uma menina nikkei segurando uma pipa pink e branca chegou perto e de supetão perguntou para Shinji: “Quer experimentar?”.

Shinji segurou a linha como se tivessem lhe passado o bastão numa corrida de revezamento, mas a pipa começou a perder altura. Foi aí que a menina, rápido, retomou a linha e com habilidade foi direcionando a pipa, correndo junto com o vento.

E quando pai e filho se preparavam para ir embora, a menina alcançou-os e entregou a Shinji a pipa pink e branca. Foi assim que Shinji e Linda se conheceram.

Shinji mal podia esperar o domingo seguinte. Ele queria retribuir o presente, dando à menina o objeto mais precioso que possuía. Era uma pequenina escultura do seu cão de estimação feita pelo seu avô em madeira.   

Mas ao passar perto do campo, na mesma hora do domingo anterior, lá havia somente meninos. O pai desceu e resolveu perguntar a uma criança que estava perto. “Ah, se é uma menina craque em soltar pipa, só pode ser a Linda” e o menino fez questão de ensinar onde ela morava.

Linda ficou muito contente. A mãe dela serviu-lhes bolinhos de chuva feitos na hora e cafezinho.

Depois, houve a vez que Shinji foi à festa junina na escola de Linda e Linda compareceu ao recital de violino de Shinji.

Até que chegou o dia em que Shinji teve de ir embora, pois o tempo de serviço de seu pai no Brasil havia chegado ao fim. Mas isso não quer dizer que os dois tivessem tido uma triste despedida. Mas, tanto um como outro, sentiram ter de se separar, um pouquinho só, mas sentiram.

Daí então cada qual seguiu seu caminho. Não mantiveram contato algum. “Como será que está o Shinji”, Linda chegava a pensar, não que estivesse querendo encontrá-lo, ficava apenas curiosa de saber.

Quanto a Shinji, toda vez que se lembrava do tempo em que havia morado no Brasil com a família, sempre Linda vinha à memória.

Aos 17 anos, Linda concluiu o curso técnico e foi trabalhar numa firma de cosméticos, mas como desejava muito fazer faculdade, ficava estudando sozinha em casa.

Subitamente a mãe de Linda adoeceu e foi internada. Um mês depois a amada mãezinha partiu para a eternidade. Linda ficou arrasada. Ainda criança, perdera o pai e agora sua mãe.

Sozinha no mundo, ela tomou a decisão de ir para o Japão. Tinha um tio e três primos morando lá. Seu tio, irmão mais novo de seu pai, estava no seu 13º ano como decasségui e tinha conseguido abrir uma loja de produtos brasileiros em Kawasaki e era onde Linda iria trabalhar.  

Fins de março, manhã agradável de tempo bom. Linda passeava pelo parque, apreciando as flores de sakura em plena floração. Nisto, um enorme cão de pelo preto aproximou-se, abanando o rabo. 

Ao lado, um rapaz simpático afagava a cabeça do cão. “Esse rosto não me é estranho. Será que...”.

- Não é a Linda?

- Shinji?

- Oi!

- Tudo bem?

- Eis me aqui.

- Sakura bonita.

- A Linda também!

Shinji olha para a bolsa que Linda traz e fica surpreso. 

Não é que a escultura de cachorro está pendurada de enfeite?!

O cachorro continua abanando o rabo e se chega mais.

- E ele?

- Este aqui é o neto do Kotaro, que é esse da escultura...

- Ah, tá! Que lindo!

 A conversa foi ficando animada. Nem parecia que não se viam há mais de dez anos.

Ambos unidos num só coração.

Quando floresce a sakura, tudo são flores na vida de Linda.

 

© 2013 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção Nikkeis no Japão trabalhadores estrangeiros
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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