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História nº 15 (Parte I): Arigato para “Amatchan”

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- Nem sei bem por que, mas eu não gosto das japas¹ - disse Daniel e foi quando quatro colegas incluindo meninos e meninas disseram:

- Isso mesmo, elas não sabem conversar direito nem são bonitinhas – e olhando para Yuka, todos começaram a dar risada.

Yuka ficou chocada. O modo de falar dos colegas que ela achava que seriam seus amigos foi cruel demais. Ela, que estava se esforçando para se acostumar à vida no Brasil, por que isso?

Tais palavras mudaram a vida de Yuka.

Voltando um pouco no tempo, os pais dela se casaram no Brasil e logo foram trabalhar como decasséguis no Japão. Dois anos depois, nasceu-lhes a filha Yuka e eles se dedicaram ainda mais ao trabalho. O plano era ficar mais uns cinco anos e retornar ao Brasil. Mas a vida foi seguindo em frente e a permanência no Japão foi se prolongando.

A menina Yuka gostava demais da escola. Como os pais não sabiam ler japonês, era Yuka que os acompanhava às compras para explicar o que estava escrito nos produtos.

E quando ela estava com oito anos, nasceu o seu irmãozinho. Os pais fizeram planos para voltar definitivamente ao Brasil quando o menininho fosse entrar no primeiro ano da escola fundamental.

O tempo passou e estava se aproximando esse momento. Entrando em 2011, pela primeira vez a família fez uma viagem mais longa. E pela primeira vez todo mundo se divertiu na estação de esqui. Pela primeira vez se hospedaram num hotel típico japonês e também cantaram no karaokê.

Foi então que as crianças, que cresceram vendo os pais trabalharem incansavelmente desde cedo até a noite, descobriram que tanto o pai quanto a mãe tinham uma habilidade especial: cantavam e muito bem!

- Como o papai é bom cantando “Kokoro nokori”, né?

- Ah, eu acho que a mamãe é melhor, o “Kaette koi yo!” dela é mais legal.

Yuka e o irmão conversaram na maior animação até tarde da noite. O que os dois não sabiam era que os seus pais se conheceram durante um concurso de música popular japonesa de âmbito nacional. O pai ficou em terceiro lugar e a mãe conquistou o prêmio máximo! Ela cantou “Kaette koi yo” com tanta paixão que foi amor à primeira vista. Mas isso havia acontecido vinte anos atrás, depois eles se casaram, foram ao Japão onde a vida era tão corrida que não tiveram oportunidade de mostrar aos filhos que levavam jeito para cantar.

Depois da viagem, a família começou os preparativos para a volta ao Brasil. Os pais, especialmente, estavam eufóricos. Como foram morar no Japão logo após se casarem, foram escassas as ocasiões em que se reuniram com os parentes. De volta ao Brasil, eles desejavam estreitar esses laços.

Inicialmente, a volta estava prevista para fins de fevereiro, mas como a formatura de Yuka seria no dia 25 de março, resolveram adiar a viagem para um pouco depois.

Seria a terceira vez que Yuka iria ao Brasil, dessa vez definitivamente. Nas vezes anteriores, ela ainda era pequena e o que guardava na memória era a imagem da obaatchan, muito boazinha, e o gosto da bala de coco.  Como havia nascido no Japão e nada sabia sobre os costumes no Brasil, viver no novo país deixava-a muito apreensiva. Tinha começado a estudar português havia um ano, mas ainda não sentia firmeza: “Serei capaz de falar e entender certinho?”, a insegurança tomava conta.

Mas como ia ficar no Japão até fins de março, ela pareceu recuperar um pouco a tranquilidade.

Duas semanas antes da formatura, um terremoto de grandes proporções seguido de tsunami assolou a região nordeste do Japão.

Yuka morava na província de Tochigi, que não foi atingida diretamente, mas ao ver as notícias pela televisão todos entraram em pânico. Eram imagens inacreditáveis. Os conhecidos, também decasséguis, correram para a casa de Yuka em busca de maiores informações sobre a tragédia, uma vez que eram poucos os que entendiam o japonês dos noticiários.

- Vamos embora logo - disse a mãe, histérica, e o pai imediatamente telefonou para a agência pedindo para antecipar a viagem, mas isso não foi possível, pois os voos estavam totalmente lotados.

Por fim, embarcaram no dia primeiro de abril. A família disse adeus ao Japão onde havia vivido boa parte da vida.

A princípio, Yuka e seu irmão ficaram morando na casa da avó, de onde iam para a escola. Dez dias foi o tempo que Yuka frequentou a escola, porque, depois que ouviu aquelas palavras maldosas dos colegas de classe, ela nunca mais voltou.

Os pais estavam ocupados nos preparativos para abrir uma pastelaria na avenida principal. O irmão, graças às aulas de judô que havia começado no Japão, tornou-se o herói do 1º ano A e estava adorando ir à escola todos os dias.

Apenas Yuka estava cada vez mais desanimada. Jurou que nunca mais iria à escola e passava os dias trabalhando em casa, dividindo as tarefas com a avó. Aceitou com alegria cuidar do cachorro da casa, mas nunca saía para lugar algum. Não queria ser vista por ninguém.

Assim se passaram dois anos. Era o dia primeiro de abril de 2013, oito horas da noite. Yuka arrumava a cozinha após o jantar, seu irmão se divertia no game, sua avó aguardava com ansiedade a novela da NHK do Japão.

Era o primeiro capítulo da nova novela das 8. Quando se ouviram os acordes do tema de abertura, Yuka correu e ficou bem na frente da televisão. Era uma melodia de ritmo contagiante que imitava um trem em movimento. Yuka ficou encantada.

Desse dia em diante, a vida de Yuka tomou novos rumos.

Parte II >>

 

Nota:

1. Principalmente os jovens costumam usar esse termo ao referir-se ao “japonês”. A autora discorda totalmente.

 

@ 2013 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção Nikkeis no Japão trabalhadores estrangeiros
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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