Descubra Nikkei

https://www.discovernikkei.org/pt/journal/2013/1/23/betwixt-and-between/

Nem Uma Nem Outra: Aceitando Completamente as Terras Fronteiriças da Minha Herança Cultural Mista

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Durante semanas, eu fiquei resistindo a escrever este ensaio. Um dia, sincronisticamente, eu me deparei com dois artigos no Descubra Nikkei que me ajudaram a dar início ao projeto. O primeiro foi a excelente crítica de Nancy Matsumoto (26 de dezembro de 2012) sobre o mais recente livro do psicólogo nikkei / “hapa” Stephen Murphy-Shigematsu, When Half Is Whole: Multiethnic Asian American Identities (“Quando a Metade Forma um Todo: Identidades Multiétnicas Asiática-Americanas”), e o segundo foi o ensaio pessoal (3 de janeiro de 2013) de Sonoko Sakai, escritora de culinária baseada em Los Angeles, preparadora e fornecedora de soba, e fundadora do [projeto cultural] Common Grains [“Grãos Comuns”].

Na sua crítica, Matsumoto escreve que a obra de Murphy-Shigematsu explora “o complexo problema de identidade entre os asiáticos multirraciais ... Com sutileza e grande empatia, ele nos leva através do que chama de ‘terras fronteiriças’ onde identidades transnacionais e multiétnicas são formadas”. Eureca! Há anos o simbolismo e a psicologia das “terras fronteiriças”—tanto internas quanto externas—é uma preocupação minha, como poeta, escritora e mulher de descendência parcial japonesa.

De forma similar, eu também fui inspirada e senti uma grande afinidade pela Sakai através da sua narrativa sobre suas experiências como uma mulher nascida em Nova York, filha de japoneses, e criada em vários lugares diferentes no Ocidente e no Japão, incluindo a cidade natal da minha mãe, Kamakura. Eventualmente, Sakai se estabeleceu em Los Angeles, onde conduz workshops e escreve sobre culinária como uma fonte de estabilidade, entrosamento, e sustento físico e espiritual. O fato de eu ter lido estes dois artigos me ajudaram a tecer os fios da minha própria história e da minha luta através dos anos para definir a minha identidade no mundo.

Recentemente, eu me mudei com o meu marido para a área de Los Angeles, depois de morar muitos anos na área da Baía de São Francisco, e fiquei entusiasmada ao descobrir o termo “nikkei”, com sua dinâmica relacionada e comunidade diversificada. De todos os rótulos que usei para me descrever—“metade-japonesa”, eurasiana, hapa, mestiça—“nikkei” parece ser o que melhor descreve quem eu sou nesta fase da minha vida.

Os meus pais, Marcel e Shizue, no dia do seu casamento; 27 de fevereiro de 1960, em Kamakura, no Japão.

Eu sou filha de mãe japonesa e de pai da Nova Inglaterra de descendência franco-canadense e indígena do grupo Abenaki Missisquoi. Meses depois de eu ter nascido em Kobe nos anos 60, o meu pai se mudou com a família para o sul da Califórnia, e mais tarde para Santa Bárbara, Guam, e Tóquio. Este constante desenraizamento, lado a lado com a minha criação bicultural, contribuiu para meus sentimentos de “ser diferente”.

Nos anos 60, havia poucas crianças como eu, mesmo no sul da Califórnia, onde passei os meus primeiros nove anos. Quando criança, eu sabia que era diferente da maioria das pessoas à minha volta, mas ainda não sabia qual caminho seguir para chegar naquela terra fugaz chamada Entrosamento. Apesar de que “Mari” é um nome comum para meninas japonesas, muitas pessoas neste país têm dificuldade de distinguí-lo de vários outros nomes parecidos—Marie, Mary, Marci, Marty—e o meu sobrenome, “L’Esperance”, apesar de que aprendi a adorá-lo, não ajudou muito a me identificar como alguém de descendência japonesa! Foi só depois que me mudei para Guam, onde meu pai lecionava, e quando passei um ano cursando o ensino secundário em Tóquio, que comecei a ter contato frequente com outros jovens multirraciais.

A minha “diferença”, como eu viria a aprender, é um legado familiar. A minha mãe—que partiu do Japão, contra a vontade dos pais, para trabalhar e estudar inglês nos Estados Unidos quando ainda era uma jovem solteira de 20 e poucos anos—não era de forma alguma uma mulher no estilo tradicional japonês: ambiciosa, franca, criativa, e curiosa, ela se sentia limitada pelas poucas opções disponíveis para mulheres no Japão após a Segunda Guerra Mundial. O meu pai, um músico e professor que minha mãe conheceu em Boston, onde os dois eram estudantes, também era “diferente” na sua família de sete filhos de pais imigrantes, sendo ele o único a cursar a universidade e a viajar para fora dos Estados Unidos.

Como foi criada no Japão do pós-guerra, apesar da sua forte personalidade a minha mãe também era, paradoxalmente, um pessoa obediente e abnegada. Como muitas mulheres da sua geração, ela me ensinou a ler e tocar piano ainda em casa, quando eu mal tinha completado três anos de idade e antes que eu tivesse iniciado qualquer estudo formal; ensinou pacientemente a mim e ao meu irmão a ler e escrever em japonês; e lia para nós tanto em japonês quanto inglês.

Eu agora me sinto maravilhada pelo fato da minha mãe—que batalhou sozinha como uma mulher imigrante no seu país adotivo, onde ela era ou desprezada ou exoticizada—ter conseguido fazer todas estas coisas para nós como resultado do seu profundo sentimento de amor e dever. Seus valores culturais e força de caráter inatos—como também, temos que admitir, a sua “diferença”—possibilitaram a sua futura carreira como empresária, na qual ela se relacionava facilmente com diversos grupos sociais e de trabalho, negociando com sucesso múltiplos, e às vezes incompatíveis, interesses e expectativas.

Quando fazíamos as nossas raras viagens familiares ao Japão, a minha mãe fazia questão de me apresentar às artes e cultura tradicionais japonesas. Entre as minhas recordações favoritas estão as nossas visitas às vastas, coloridas e barulhentas áreas de alimentação da Mitsukoshi e da Takashimaya, as lojas de departamento que a minha mãe adorava em Ginza. Onde quer que fôssemos no Japão, eu podia sentir o seu silencioso amor pelo país e cultura que ela havia deixado para trás. Apesar de que anos se passariam até que eu pudesse apreciar o que ela havia me proporcionado, eu absorvi o que ela me ofereceu até que aquilo tudo se tornou parte de mim.

O meu pai me disse que o que o salvou das perspectivas limitadas da sua criação numa família provinciana e católica conservadora durante a Grande Depressão foi o fato dele ter sido convocado para a Guerra da Coréia. Lá, como um jovem soldado morando longe da Nova Inglaterra pela primeira vez, ele foi apresentado à literatura de alto nível pelos seus companheiros de beliche que haviam tido o privilégio de cursar a universidade. Durante seu período de folga no Japão, o meu pai se apaixonou pela cultura japonesa e, muito mais tarde, retornou para morar permanentemente naquele país, onde permanece já fazem 35 anos, ocupando a especial “terra fronteiriça” do expatriado de longa duração.

Sem contar com o apoio da família, ele cursou a universidade em Boston com a assistência da GI Bill [Lei de Assistência ao Soldado] e mais tarde completou o mestrado em educação musical, eventualmente tomando um risco ao se dedicar em tempo integral à sua velha paixão pela direção de música de coral, a qual acabou compartilhando por 30 anos com a comunidade internacional de cantores e amantes da música em Tóquio. Eu acho impressionante que o meu pai, um homem de origem humilde, continuou a cultivar uma vida tão expansiva e criativa, apesar de numerosos obstáculos iniciais. A sua “diferença” se tornou uma vantagem.

Quando eu tinha 20 e poucos anos e ainda morava em Los Angeles depois de ter cursado a universidade, eu comecei a sentir curiosidade sobre o Japão e o meu lado japonês. Assim sendo, eu me mudei para Tóquio em 1985. Lá, trabalhei em ocupações entediantes, mas o visto que estes trabalhos me proporcionaram e o dinheiro que ganhei me permitiram explorar Tóquio, viajar pelo Japão, e socializar com meus amigos japoneses, os quais, apesar de serem muito gentis comigo, na maior parte me viam como uma gaijin (“forasteira”) e periodicamente pensavam em voz alta quando eu iria retornar ao meu país.

Apesar de ter aprendido muito sobre o Japão e de dar grande valor ao que aprendi, ficou claro para mim que eu nunca iria—nunca poderia—ser considerada japonesa, mesmo se eu lesse, escrevesse, e falasse o idoma fluentemente; me casasse com um japonês; adotasse um nome japonês; e morasse lá o resto da minha vida. Depois de mais de dois anos desta existência marginal, me sentindo solitária e sem saber que rumo tomar, retornei para os E.U.A. Quando posso, eu agora viajo periodicamente ao Japão para visitar minha família em Tóquio e Kamakura, apesar de que não com a frequência que gostaria.

Depois de onze anos nas cidades de São Francisco e Nova York, eu me reestabeleci na área da Baía de São Francisco em 1999, onde permaneci até novembro. Durante este tempo, o meu contato principal com a cultura japonesa, excetuando as esporádicas visitas à família da minha mãe no Japão, eram as minhas excursões solitárias pela Japantown de São Francisco. Depois de perder a minha mãe (em 1995, sob circunstâncias misteriosas e nunca esclarecidas—uma experiência traumática para mim), havia para mim algo indescritivelmente reinvigorante ao nível da alma naquelas horas que passei em Japantown, uma “cidade fronteiriça” urbana que não era nem os Estados Unidos nem o Japão, mas onde senti um certo consolo—um sentimento quase que de integração—em pratos, objetos e imagens familiares.

Lá, eu podia me conectar com a minha mãe e com todo o significado que ela e sua cultura tinham para mim. Poucas coisas me faziam mais feliz do que passar a tarde sozinha, passeando pelos prédios velhos e lojas atulhadas de Japantown. Eu saboreava um almoço japonês de oyakodonburi ou tempura soba, olhava as vitrines, e vagava pelos corredores da Livraria Kinokuniya—sem conseguir ler muito japonês, mas curtindo o visual das lombadas de livros cobertas com kanji e das revistas espalhafatosas de cultura pop, como também das suntuosas fotografias em livros sobre jardins japoneses, casas rurais tradicionais, arte, culinária, arranjo de flores, e muito mais. Eu agora acho que estava tentando integrar a perda da minha mãe. Eu não sabia o porquê, mas eu me sentia melhor, mais centrada e com os pés no chão, depois destas tardes solitárias.

O que acabou complicando ainda mais o meu modo de me sentir “diferente” é que eu nunca pareci muito oriental e frequentemente “passei por” ou fui erroneamente identificada como alguém de outra etnia ou nacionalidade (italiana, índia, espanhola, etc.). Isso nunca me incomodou de verdade, mas me fez lembrar que eu, e a minha aparência para os outros, habitamos as “terras fronteiriças” descritas por Murphy-Shigematsu, aquele universo do indivíduo de etnia mista que não fica nem aqui e nem lá. Às vezes, as pessoas pensam que sou branca e se dizem surpresas quando explico que sou misturada. Da mesma forma, o meu sobrenome francês e minha aparência não lá muito oriental me fizeram sentir “differente” no meio da comunidade literária asiática-americana, onde uma herança cultural de homogeneidade e xenofobia persiste em alguns círculos.

Uma vez, em um evento (organizado, ironicamente, para discutir um filme sobre o “privilégio dos brancos”), alguém compartilhou com o grupo sua idéia de que era importante estar fazendo o nosso debate “numa sala cheia de gente branca”. Aquilo foi algo surpreendente para mim, me forçando a ver a minha “differença” sob um novo prisma; não importava em nada o quanto eu me sentia japonesa por dentro, porque naquele momento eu não era nada japonesa, nem mesmo um pouquinho, nos olhos daquela pessoa. Apesar de ter sido uma falha inocente, seu erro de julgamento me afetou e me fez reavaliar o meu senso de identidade pessoal. Se eu pudesse de alguma forma conseguir me definir para mim mesma, eu pensei comigo, eu não me sentiria tão incomodada com as suposições falhas dos outros.

Era esse o meu problema: Quem sou eu? O que sou eu? E, ainda mais importante, como eu quero ser vista, antes de tudo, por mim mesma? Depois de anos de questionamento, eu me sinto como se estivesse finalmente me aproximando de uma certa claridade e auto-aceitação pela qual lutei muito. É um trabalho em andamento.

Como muitas pessoas de herança cultural mista, toda a minha vida eu busquei um “lar”. O meu retorno ao sul da Califórnia depois de uma longa ausência é o mais recente capítulo numa longa e contínua jornada para encontrar o meu lugar, tanto internamente quanto externamente. A descoberta da comunidade nikkei se tornou parte deste processo e, à medida que continuo a explorá-la, vou aprendendo como posso ser “diferente” e ainda assim pertencer a uma comunidade.

© 2013 Mari L’Esperance

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About the Author

Nascida em Kobe, no Japão, Mari L’Esperance é uma poeta, escritora, e editora que retornou recentemente ao sul da Califórnia após uma ausência de 27 anos. Sua coletânea de poesia The Darkened Temple (“O Templo Escurecido”, 2008 University of Nebraska Press) recebeu o Prêmio Prairie Schooner Book. Uma coletânea anterior, Begin Here (“Comece Aqui”), recebeu o Prêmio Sarasota Poetry Theatre Press Chapbook. Juntamente com Tomás Q. Morín, ela editou a antologia Coming Close: Forty Essays on Philip Levine (“Aproximando-se: Quarenta Ensaios sobre Philip Levine”), a ser publicada em 2013 através da University of Iowa Press. Você pode ler mais sobre ela no site www.marilesperance.com.

Atualizado em janeiro de 2013 

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