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Habitar num espaço-entre

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Eu nasci no Japão e atravessei o oceano em direção ao Brasil aos oito anos de idade, num navio dentro do qual passei 40 longos dias, muito diferentes das 24 horas de vôo necessárias atualmente para o deslocamento. Ao embarcar na terra brasileira, estranhei as diferentes raças com as quais me deparava e adorei comer banana aos montes todos os dias, o que, no Japão, era proibitivo pelo seu alto preço naquela época.

Lembro-me que detestava quando alguém me dava beijinhos no rosto e beliscava as minhas bochecas dizendo “bonitinha”. Eram as minhas primeiras experiências de contato pele a pele as quais eu não estava acostumada.

Durante os primeiros anos, passei por uma fase de adaptação, aprendendo a língua portuguesa através da japonesa. Depois disso, passei efetivamente a frequentar a sociedade brasileira: estudava numa escola local, era obrigada a me comunicar em português e aprendia os seus costumes e hábitos com os amigos brasileiros. Era muito entristecedor ouvir os amigos me chamarem de “japonesinha” mesmo porque, naquela época, sashimi não tinha o mesmo significado que possui hoje, era apenas estranhas “fatias de peixe crú” que os orientais comiam.

A questão da identidade para pessoas como eu, que nasce no Japão e que tem aí o convívio dos primeiros oito anos de infância e que cresce no outro lado do planeta, é complexa. Apesar de conviver na sociedade brasileira, recebem uma educação japonesa dos pais e, ainda, que se baseia em pensamentos de quando eles viviam no Japão, ou seja, cria-se aqui um lapso temporal. E é justamente isso que faz os japoneses do Brasil serem mais japoneses que aqueles do Japão, isto é, mais tradicionais.

A primeira vez que voltei ao Japão, após vinte anos de permanência no Brasil, senti algo muito estranho. Pensava, na época, que eu era japonesa, mesmo porque, no Brasil, todos me chamavam de “japonesinha”, mas descobri que não era. Ao ver o rosto dos japoneses no cruzamento de Shibuya, todos japoneses, sem exceção, senti uma estranheza indescritível. Tive a mesma sensação quando entrei no trem e percebi que os japoneses não olhavam ninguém nos olhos, como se as pessoas alheias não existissem dentro daquele transporte público. Era um olhar que não vê, mas a tudo fica atento colhendo as informações disfarçadamente pelos cantos dos olhos. Muito distinto da paisagem multiracial onde as pessoas olham, reparam e trocam até sorrisos, mesmo que com desconhecidos, ou seja, o Brasil. Basta reparar os homens que acompanham com olhar - e algumas vezes com um assobio ou chamadas - as mulheres bonitas e sensuais que passam por perto.

A questão de pertencimento é complicada também. Apesar de pertencer a duas culturas e dois países, falar, ler e escrever as duas línguas, muitas vezes tem-se a impressão de não fazer parte de nenhuma delas. É como se situássemos num espaço em suspensão, em um espaço-entre as duas culturas.

Desenvolvi uma pesquisa acadêmica sobre o Espaço Ma, um espaço-tempo interstical de onde e quando da cultura japonesa. Trata-se de um espaço vazio intervalar e potencial, cuja origem remonta ao espaço vazio cercado por pilastras amarrado por cordas, onde era esperada a aparição divina. Característica que faz parte do senso comum do povo japonês, encontra-se no seu cotidiano como na maneira em que estabelece uma comunicação, seja na linguagem oral representada pelo silêncio, seja na gestual, no modo de se cumprimentar. Tanto o silêncio ou a pausa que se coloca na fala dos japoneses quanto o vazio que se estabelece não reservam um significado negativo, ou seja, não perfaz o nada que equivale ao zero da morte, mas ao zero do nascimento. Abriga, assim, uma possibilidade de tudo acontecer.

O ideograma Ma, um sol entre as duas portinholas, reserva a semântica do espaço-entre e compõe expressões usadas no dia a dia como Manuke (Ma + nukeru de faltar) que significa aquele a quem falta o Ma, isto é, uma pessoa boba ou idiota.

Não por acaso, eu me sinto justamente, na minha condição de jun-nissei (aquele que nasce no Japão e imigra a outro país sem terminar o ensino fundamental), no espaço Ma entre o Brasil e o Japão. Situar-se nesse espaço intermediário pode constituir um problema para algumas pessoas, mas a meu ver, é um privilégio viver nesse lugar de intersecção entre as duas culturas tão distintas e ser possível escolher, dependendo da ocasião, modos de pensar e de agir.

Outra forma de encontrar conforto para os que habitam o espaço intervalar é a o ultrapassamento dessa bipolaridade criada entre o Brasil e o Japão, de maneira a obter referências pelo menos triádicas, ou quando muito, polivalentes. Abarcar uma multiplicidade de visões e dominar vários pontos de vista seja talvez algo interessante e necessário no mundo globalizado em que vivemos.

Em relação à minha questão da identidade e pertencimento, hoje em dia, a questão da homogeneidade dos rostos japoneses no Japão, apesar da mistura que possa se verificar na contemporaneidade, ou o olhar vago de quem não vê os outros não me assustam mais e muito menos os beijinhos no rosto e os abraços calorosos trocados por brasileiros. Não enfrento mais a exclusão, “ou um ou outro” e convivo a adição, o “um e outro” que esse espaço-entre é capaz de proporcionar.

© 2009 Michiko Okano

Brasil jun-nisei
About the Author

Michiko Okano possui doutorado em Comunicações e Semiótica e é Professora Assistente de História da Arte Asiática na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Também trabalha como docente colaboradora no Programa de Pós Graduação no Centro de Estudos Japoneses da Universidade de São Paulo (USP) e Coordenadora do Grupo de Estudos da Arte Asiática (GEEA). Okano é a autora de Ma: in between spaces of art in Japan (Annablume, 2011) e Manabu Mabe(Folha de S.Paulo, 2013). Entre seus projetos culturais destacam-se Olhar InComum: Japão Revisitado (UnCommon Gaze: Revisited Japan) (Museu Oscar Niemeyer, Curitiba, Paraná, Brasil, 2016). O foco de sua pesquisa é o diálogo criado pelas migrações da arte e artistas entre o Japão e o Ocidente, com particular interesse nos artistas nipo-brasileiros.

Atualizado em janeiro de 2018

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