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Curso de Uchinaguchi preserva cultura e reforça identidade de Okinawa

Gratuito, curso de Uchinaguchi completou 12 anos em 2020 (Credit: Colégio Exatus)  

A cultura de Okinawa está presente na cidade de São Paulo por meio de atividades e eventos organizados pelas associações. Música, dança e culinária são os principais expoentes de divulgação. 

Esses eventos costumam atrair muitos visitantes, que, aos poucos, vão tendo contato também com palavras diferentes do “idioma japonês”. “Uchina”, “mensore” e “goya” são palavras facilmente identificadas em um evento típico da comunidade de descendentes de Okinawa em São Paulo; elas pertencem ao “Uchinaguchi”, que é, em termos gerais, o dialeto de Okinawa.

“Sou nissei. Meus pais sabiam pouco o japonês e muito menos ainda o português; a língua predominante era o Uchinaguchi”, conta Augusto Takara, 72 anos, professor e responsável pelo curso de Uchinaguchi e Cultura promovido pelo colégio Exatus*.

O curso foi inaugurado em 12 de março de 2008, mesmo ano em que se comemorou o Centenário da Imigração Japonesa no Brasil. As aulas são gratuitas e abertas ao público externo. “A motivação para iniciar e manter o curso é a gratidão aos nossos pais e principalmente para não esquecermos desta herança cultural que recebemos”, afirma Takara.

O fator familiar é naturalmente importante para o interesse em aprender o Uchinaguchi. Porém, o caminho nem sempre está livre de dificuldades. “Meus quatro avós vieram de Okinawa, de Yagaji, região atual de Nago. Eles vieram para o Brasil entre 1925 e 1930 e estabeleceram-se na região do Vale do Ribeira [interior do estado de São Paulo]”, conta Valdete Tamashiro, 45, sansei, auxiliar de coordenação do colégio Exatus. “Minha mãe se expressava melhor em Uchinaguchi misturado com japonês. Ela era a filha mais velha de onze irmãos. Portanto, era ela que auxiliava minha avó na lida da casa, e a comunicação era basicamente em Uchinaguchi. Não aprendi o idioma, mas sempre ouvi histórias, palavras soltas, expressões... As mais usadas se referem a comida, comportamentos ou características físicas: goya, gachimaya, chiburumagui... Meu pai não queria que houvesse confusão na minha formação que pudesse atrapalhar meus estudos, e minha mãe se esforçava em falar comigo somente em português. Pelo mesmo motivo, e por não termos condições de arcar com cursos extras, não estudei o japonês.”

“Tenho interesse pelo Nihongo desde criança, porém, meus pais não tinham condições de pagar um curso”, recorda Marilena Oshiro, 54, pesquisadora científica, sansei. “A vontade voltou depois de ter ido pela primeira vez ao Japão, em 2017. Fiquei muito triste por não ter conseguido interagir mais com os parentes do meu pai, o seu único primo vivo (93 anos de idade) e esposa (94), em Okinawa. Fomos bem recebidos, eles ficaram contentes pela visita. Porém, eu fiquei muito constrangida por não conseguir conversar. O meu primo que foi comigo é quem ficou como intérprete. Mas é diferente poder conversar diretamente, sem intermediário. Foi bem bacana, todos se emocionaram na despedida. Nunca esquecerei. Voltei para o Brasil bem triste por não saber falar o japonês. Isso me motivou a aprender o Nihongo e também Uchinaguchi.”

Saber o Nihongo não é pré-requisito para frequentar as aulas, apenas facilita. “Muitos alunos sabem muito, e outros sabem muito pouco. É muito bom conhecer o japonês, pois as letras são iguais, embora a fonética seja diferente em alguns aspectos”, diz o professor Takara. “A aula é mais focada na parte cultural que na linguística. Cultura, música, linguística, dança, e estamos pensando em outras atividades. O desenvolvimento continua na forma espiral, de tal forma que um aluno novo, tendo vontade, consegue acompanhar. Tem começo, mas não tem fim.”

“Eu sabia que existia uma diferença entre o japonês e o Uchinaguchi, pois minha mãe sempre comentava. Não conseguia compreender direito, pois para mim era um Japão só. Eu também não convivia com a ‘colônia’, nos kaikans, na escola, no bairro”, conta Valdete.

Marilena estuda japonês há dois anos e Uchinaguchi há um. Ela conta duas histórias curiosas da infância e adolescência, que são situações comuns na vida de um Nikkei. “Estava na segunda ou terceira série do primário. Em uma redação, escrevi ‘okazu’. A professora não entendeu e eu não sabia explicar. ‘Gachimaya’, ‘kwatchi’, ‘chiburu’: achava que eram palavras japonesas usadas por todos os japoneses. Quando comecei a trabalhar no Banco América do Sul (aos 17 anos), 90% dos funcionários eram de ascendência nipônica. Daí eu soltava essas palavras, e todos ficavam olhando para mim com olhar de interrogação. Só depois é que entendi que Okinawa tinha linguagem diferente (risos)”, lembra.

Alunos

O relato de Valdete ilustra o método do curso, que combina o interesse cultural com o aprendizado do idioma. “Em 1998, fui a uma exposição no Memorial do Imigrante sobre okinawanos e vi muita coisa que via na casa dos familiares, na minha própria e explicações mais organizadas, como mapas, informações sobre tradições, culinária, música... Esse esclarecimento abriu uma curiosidade que já existia, mas mais orientada. Desde então, venho buscando informações, tentando conversar com familiares ou pela internet. Em 2008, o colégio Exatus iniciou o curso e estou lá desde então. Encontrei uma nova família, com quem posso compartilhar lembranças, entender as diferenças da língua entre os shimas (divisões dentro de Okinawa, como se fossem distritos). Acredito que muitos descendentes de okinawanos não têm ideia do quão complexa e completa é a cultura de Ryukyu. História, reinado, costumes, religião, culinária, tecelagem, pintura, estilo de poema (ryuka), vidraria, idioma. Não é parte de uma cultura maior. É uma cultura única, com mistura de culturas: da China antiga, do Japão antigo, do Sudeste Asiático com um todo”.

“Como o grupo é bem heterogêneo, em termos de idade e conhecimento prévio, costumamos resgatar memórias para tornar a aprendizagem da cultura e do idioma mais rico”, afirma o prof. Takara. “Discutimos músicas como Tinsagu nu Hana, Ashiji Bushi e Juban Kuduchi, às quais minha mãe associava a valores para a vida, quando bem interpretadas, não somente nas palavras, mas em um significado maior, à sabedoria do povo okinawano. Usamos várias outras músicas, conforme a curiosidade de cada integrante do grupo. Usamos também vídeos disponíveis no YouTube de teatro okinawano (Uchina Shibai). Estes usam tanto a linguagem mais rebuscada, formal, da corte de Ryukyu, como a linguagem do povo, mais informal. É uma boa fonte para conseguirmos ouvir algo muito próximo do original, uma vez que fontes mais recentes, mesmo as vindas de Okinawa, são ‘contaminadas’ por palavras que não existiam em Uchinaguchi no mundo do século XIX, pelo Nihongo e pelo inglês.”

Entre os alunos regulares, não há crianças e adolescentes. Os alunos estão na faixa etária acima dos 35 anos, com predominância de descendentes de Okinawa.

“Tivemos ao longo desses 12 anos vários jovens e adolescentes que entraram no grupo, mas eles têm outras prioridades como escola, trabalho, faculdade, e há conflito de horário com aulas preparatórias para o vestibular, então não conseguem acompanhar pelo tempo disponível que cada um tem”, explica Valdete. “Acredito que os mais novos não têm tanto contato, pois nem sempre os mais velhos conseguem se expressar em Uchinaguchi. Entendem quando ouvem, mas falam pouco. Alguns jovens que fazem parte de grupos de taikô, odori, sanshin, aos poucos vão tomando consciência do que é o Uchinaguchi, Uchina, e da cultura”, completa.

Identidade

Quando se fala em dialetos, é comum questionar a utilidade de aprender algo tão específico. Nesse ponto, a questão da identidade cultural tem importante relevância. “O interesse pelo Uchinaguchi foi de aprender a linguagem dos meus ancestrais, mesmo que não seja útil no dia a dia. Para mim, é como reviver ou se aproximar de minhas origens, de fazer uma conexão com meus ancestrais. Seria uma forma de não esquecermos quem somos e termos a gratidão pela vida que nos foi passada. Tem outro lado voltado para saúde, pois seria uma forma de estimular o cérebro. Por estar aprendendo sanshin [instrumento musical típico de Okinawa], aprender Nihongo e Uchinaguchi foi mais um motivo. Temos que tocar e cantar. E para cantar, temos que colocar o sentimento, daí precisamos entender a letra. Uma coisa puxa a outra”, afirma Marilena.

“Conhecer e estudar a cultura de Okinawa me proporcionou uma reflexão sobre minha identidade. Compreendi por que me sentia deslocada junto a alguns poucos amigos japoneses, por que meu coração bate diferente quando escuto o ‘tun-tun-ten’ de um sanshin e a emoção escorre pelos olhos, a entonação diferente das palavras (terminam como se fossem oxítonas), o modo de falar e se comportar (mais solto, riso alto, as festas e as missas). E conhecer a si mesmo ajuda a compreender o outro. Todos somos descendentes de algum povo, seja indígena do Brasil, italiano, africano... Enfim, são diferentes culturas que contribuem para o que somos, são semelhanças nas culturas que nos unem”, acredita Valdete.

“Preservar a linguagem original dos nossos ancestrais é importante para qualquer raça. Não só a linguagem, como também os costumes familiares, religiosos (principalmente cultuar os antepassados), culturais (dança, música, sanshin, pintura), culinárias etc. Acho que conhecer, entender e preservar isso tudo significa você respeitar a história de um povo, de uma raça. É valorizar de onde você veio, o sangue que corre nas suas veias. É uma forma de gratidão pela sua existência. Acredito que o povo de Okinawa é um povo de muita sabedoria, por isso precisamos resgatar, compreender e praticar esses conhecimentos”, finaliza Marilena.

Vocabulário

- Uchina: Okinawa
- Mensore: bem-vindo
- Goya: melão de são caetano (nigauri em japonês)
- Chiburu magui: literalmente, cabeça grande
- Kwatchii: mistura (okazu em japonês)
- Gachimaya: guloso

 

*Em razão da pandemia da Covid-19, as aulas estão suspensas.

 

© 2020 Henrique Minatogawa

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About the Author

Henrique Minatogawa é jornalista e fotógrafo, brasileiro, nipo-descendente de terceira geração. Sua família veio das províncias de Okinawa, Nagasaki e Nara. Em 2007, foi bolsista Kenpi Kenshu pela província de Nara. No Brasil, trabalha na cobertura de diversos eventos relacionados à cultura oriental. (Foto: Henrique Minatogawa)

Atualizado em julho de 2020

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