Descubra Nikkei

https://www.discovernikkei.org/pt/journal/2019/7/8/7701/

Sobre a websérie NipoBrasileiros

Quando soube que a websérie NipoBrasileiros seria lançada no YouTube em abril deste ano (2019), fiquei bastante curiosa. Qual abordagem teria sido feita? Por que uma produtora independente interessou-se pelo tema?

Imediatamente, pesquisei sobre a Pietà Filmes e Produções - até então desconhecida por mim. Trata-se de uma produtora de criação de conteúdo audiovisual para cinema, TV e novas mídias. Segundo eles, “buscam histórias com personagens normalmente invisibilizados”. Começou a ficar mais claro e para ir além, tive a oportunidade de contatá-los para descobrir melhor sobre a produção. A entrevista foi transcrita ao final desse artigo.

Divulgação

A série documental de 9 episódios mostra, através de narrativas, a construção da imagem de “sucesso” profissional dos nipo-brasileiros. Carreiras como Medicina e Direito foram retratadas, mas o maior volume foi dedicado a campos com menor representatividade nikkei, como por exemplo, Dança, Literatura, Jornalismo, Artes Cênicas. A ideia da produtora era mostrar como os personagens encontraram soluções para superar os estereótipos e as barreiras étnicas em nosso país, onde a questão racial ainda predomina sobre a social.

Quando vejo produções sobre nós, nikkeis, sinto algo como, “Que legal, alguém retratou nossa história, nosso sentimento de identidade”. Foi também com essa motivação que conheci o Discover Nikkei e, aliado ao meu gosto por escrever, passei a contribuir aqui.

Os canais de comunicação, principalmente digitais, facilitam o contato com histórias nikkeis que lembram as nossas. Permitem-nos ler e ouvir depoimentos de quem também já se sentiu dividido ou se sente constantemente. Amamos o Brasil e os brasileiros, mas temos valores e costumes japoneses enraizados em nossa forma de pensar e agir. Como encontrar uma maneira de lidar com isso?

Apesar das diversas áreas profissionais mostradas nos episódios da série, todos os personagens passaram por obstáculos e desafios em suas jornadas. Nossa busca interna por entender o sentimento de mistura ocorre, paralelamente ou em momento diferente, à trilha profissional. Reflexões pessoais e experiências diferentes fazem florescer o que gostamos e temos interesse em exercer ou decidir empreender, como no caso do Gustavo Tanaka e da Mayura Okura, abordados no episódio 5.

Para mim, ser nipo-brasileira é viver dividida entre culturas bem distintas, procurando uma união harmoniosa entre os dois mundos. Há uma intenção em ser representante da união, do que há de melhor em cada cultura. Procuramos agir com a alegria, espontaneidade e solidariedade do Brasil, mas também buscamos a prática de ensinamentos japoneses tais como, a gentileza, empatia e gratidão.

Falando em gratidão, admirável e nobre é o sentimento de retribuir à sociedade brasileira relatado pela médica Emi Murano e pelo advogado Masato Ninomiya no episódio 8. Sim, retribuir à mesma sociedade que nos rotula desde a infância, por exemplo, por um grito na rua, "Neusa, abre os olhos!!" (de "japoneusa") ou frequentemente em nossas rotinas, chamando-nos por "japa", “china”.

Os depoimentos dos bailarinos e atores também me recordaram que no nado sincronizado (esporte atualmente chamado de “nado artístico”), passei pelo difícil reconhecimento pessoal de que meu tipo físico não seria favorável para ir às Olimpíadas, por mais que sonhasse muito. Curiosamente, a responsável técnica do esporte, Meico Fujita, era nikkei, o que gerava uma conectividade maior e mantinha minha esperança de um dia participar de campeonatos mundiais. Após 3 anos como atleta na adolescência, perceber que minha estatura baixa possivelmente seria uma limitação foi um dos motivos para desistir de praticá-lo, pois os treinos puxados eram voltados para competições.

Arquivo Pessoal. Nado sincronizado.

Meus históricos como dekassegui e bolsista no Japão também contribuíram para me reconhecer mais claramente como mistura. Essas experiências foram mostrando que seria mais fácil aceitar a identidade nikkei do que tentar ignorá-la, no sentido de fingir que tudo que remete a Japão não é comigo. Foram também nessas ocasiões que pude conviver com outras nacionalidades e descendentes japoneses de outros países, o que tornou facilmente compreensível o relato e a dedicação à profissão do embaixador Edmundo Fujita, personagem do 1º episódio.

Quanto ao mercado de trabalho, em cerca de 10 anos de experiência, vi que a generalização é muito comum também nas empresas. Isso não acontece somente com os nikkeis, esse pré-julgamento é uma característica humana, da qual dificilmente ficamos isentos. O fato é que muitas vezes recebemos rótulos sem termos tido a chance de nos mostrar. A sociedade espera que sejamos "esforçados, dedicados, pacientes, educados.” Foi um processo longo para mim ter esclarecido se essas características eram realmente minhas ou se a sociedade quem ditava regras para essas posturas. Seria aceita se quisesse me comportar de outra maneira?

Em meio ao conflito interno de não se sentir “nem aqui e nem ali” ou “mais ali do que aqui”, acredito que nossa jornada se traduz a uma “coisa bonita”, uma dedicação intensa ao que escolhemos fazer. Como se quiséssemos provar que dentro de nós existe algo mais relevante e significativo do que nossos olhos puxados e também em dedicação aos antepassados imigrantes, que passaram apuros por nossa existência aqui hoje, nós nos esforçamos.

Viemos ao mundo para contribuir com algo além do que nossos rostos estampam. Essa foi a “coisa bonita” que a websérie me ajudou a concluir.

Abaixo, a entrevista com a Pietà Filmes e Produções e seus parceiros.

A intenção da websérie fica clara ao exibir os relatos dos nikkeis brasileiros sobre as dificuldades e as descobertas até suas profissões. Como surgiu a ideia desta produção? Poderiam nos contar o histórico?

Em 2017, a professora da UFPR, Monica Setuyo Okamoto, conheceu a embaixatriz Maria Ligaya Fujita e descobriram que coincidentemente tinham projetos similares.

A professora Monica estava trabalhando com um projeto de extensão universitária intitulado "Arquivo de História Oral de Grupos Minoritários Étnicos", que tem como objetivo criar um espaço para relatos orais dos nipo-brasileiros e asiáticos de modo geral com o intuito de debater, refletir e questionar os estereótipos acerca desse grupo étnico-racial, em especial aqueles que tinham pouca representatividade em alguns segmentos profissionais.

Por outro lado, a embaixatriz Ligaya revelou que o seu falecido marido, o embaixador Edmundo Sussumu Fujita, tinha um projeto muito semelhante e que ela gostaria de concretizá-lo.

Assim, iniciou-se oficialmente o projeto de produzir um documentário sobre os nipo-brasileiros que foram pioneiros em alguns campos profissionais, como o próprio embaixador Fujita (primeiro asiático a entrar no Itamaraty).

Em 2018, a professora Monica, que estava participando do DOXA (Festival de documentários) em Vancouver, Canadá, conheceu a brasileira Vanessa Miho que, por sua vez, nos apresentou à produtora de São Paulo, Pietà Filmes, do cineasta Diego Costa.

De junho de 2018 a maio de 2019, a professora Monica, os alunos e alunas da UFPR, a embaixatriz Maria Ligaya, o diretor Diego Costa e os roteiristas Alexandre Nakahara e Pedro Tinen trabalharam para que, em tempo recorde, esse projeto fosse concretizado.

Foram inúmeras reuniões que a Maria Ligaya e Monica tiveram com a equipe da Pietà para que a websérie se configurasse de forma que atendesse aos propósitos de todos: do embaixador Fujita, do projeto acadêmico da UFPR e da visão comercial e cinematográfica da Pietà. Foi ótima a parceria! Uma sincronicidade de pensamentos e desejos tornou tudo isso possível. Não seria possível sem a expertise nessa área da Pietà Filmes e a generosidade da embaixatriz Maria Ligaya que patrocinou o projeto. Contou-se também com o apoio cultural da Busan University of Foreign Studies, da Coréia do Sul; Fundação Japão e da Pró-Reitoria de Extensão da UFPR.

Divulgação. Monica Setuyo Okamoto (esquerda) e Maria Ligaya Fujita

Como ocorreu a seleção dos entrevistados e dos blocos de profissões?

Foi durante uma reunião que nós, Ligaya, Monica, Diego, Pedro e Alexandre decidimos os episódios centrais. Por conta das limitações financeiras do projeto e do curto tempo para sua realização, optamos por fazer um recorte, escolhendo nipo-brasilieiros do Distrito Federal, São Paulo e Paraná.

Cada um conhecia alguém com uma história interessante e fomos elencando as pessoas. Notamos que em alguns segmentos como dança, jornalismo, literatura e artes cênicas a representatividade era muito baixa, quase negativa.

Assim, por meio de pesquisas, levantamos alguns dados. Por exemplo, de acordo com os dados da Fuvest de 2015 que elencava o perfil racial dos candidatos(as) nos 10 cursos mais concorridos, notamos que a presença de asiáticos em artes cênicas, por exemplo, era 0, jornalismo 1,7%, em contraponto com a super representatividade dos amarelos em cursos tradicionais como Medicina, Engenharia e Direito.

O trabalho tem atingido as expectativas? Como tem sido a repercussão?

Finalizamos a websérie em maio deste ano, portanto ainda não temos a dimensão de como este projeto vai impactar a sociedade brasileira, mas até o momento as respostas têm sido positivas.

Algumas pessoas da comunidade nikkei têm nos revelado que a websérie NipoBrasileiros mostrou um lado pouco comentado e até ignorado pelos próprios nikkeis e pela sociedade brasileira: as barreiras étnicas em alguns segmentos profissionais.

Curioso também têm sido a participação dos alunos(a) da UFPR (Andrey Mello, Eduardo Fabro, Hely Branco, Larissa Schmitz, Maico Wolfart, Sílvio Menezes e Willians de Castilho)  no projeto. Eles são não-descendentes de asiáticos, mas nos deram a visão do outro lado (da etnia branca, afro e indígena). Esses alunos nos revelaram que o projeto fez com que repassassem a sua própria etnicidade e passaram a reformular algumas ideias que tinham sobre os asiáticos.

Há a intenção de produzir episódios novos, sobre outros campos de atuação?

Nós, da equipe do projeto, teríamos uma grande satisfação em continuar a promover novos episódios, com certeza está no horizonte. Mas, já estamos articulando um próximo projeto acerca do tema.

Divulgação. Equipe produtora da websérie NipoBrasileiros.

 

© 2019 Silvia Lumy Akioka

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About the Author

Silvia Lumy Akioka é sansei brasileira. Foi dekasegui aos 17 anos e em outra ocasião, bolsista na província de Fukuoka, quando publicou a série “O ano de uma brasileira no outro lado do mundo” - seu primeiro contato com este site. É admiradora da cultura japonesa e também gosta de escrever sobre outros temas em blogs. Esteve em Los Angeles como voluntária em 2012 e há 6 anos, é consultora oficial do Descubra Nikkei.

Atualizado em fevereiro de 2019

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