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O ozooni da minha avó

“Ela está fazendo a sopa!”

Essa era a dica que a minha mãe e as minhas tias davam a nós, crianças, para que saíssemos da cozinha de minha avó.

Ela já vinha de alguns dias se dedicando ao preparo desse caldo tão especial, o ozooni, para que, segundo a tradição japonesa, ele nos trouxesse sorte para o novo ano que já estava por vir.

Meu avô, o marido dela, não dava muita bola para isso. Muito menos meus outros avós – por parte de pai. Eles já seguiam a tradição ocidental.

Longe dos adultos, meus primos mais velhos reclamavam que não queriam comer ozooni naquele ano. Diziam que não gostavam de polvo e que o moti, dentro do caldo, ficava sem graça.

Particularmente, o nome dessa sopa, ozooni, sempre me lembrou de um homem que jogava futebol com meus amigos, de vez em quando, no campinho que ficava perto de casa. Ele se chamava Azoni.

Moreno e um pouco gordo, o Azoni adorava cobrar os escanteios que aconteciam nos jogos. Mas o que ele mais adorava no mundo, sem brincadeira, era o fato de que eu, neto de japoneses, jogasse futebol com eles. Por isso, ele nunca deixava de tirar sarro de mim: “Não quero o japoneis no meu time, não! Japoneis não sabe jogar bola!”, dizia ele aos risos.

Até que teve um dia em que, no meio do jogo, eu peguei a bola e a passei por entre as pernas dele. Mas, antes que eu terminasse a jogada, ele me ergueu e saiu correndo pelo gramado, comigo pendurado num ombro.

Ele gritava que eu era um japonês safado e que eu não ia dar o drible da vaca nele, não.

Eu gritava bem alto e sem parar, para que ele me soltasse. Meus colegas corriam atrás da gente dando risada e tentando nos acertar com boladas.

E, de repente, no dia 1º de janeiro, na hora do almoço, era anunciado que a sopa estava pronta.

Minha avó aparecia cansada, mas feliz, misturando o caldo e servindo as tigelas enfileiradas em cima da mesa.

Enquanto nós, seus netos, pegávamos cada um a sua porção, ela nos dizia algo bem especial, em japonês. Ao seu lado, um dos meus tios, tomando cerveja, traduzia dizendo que ela só estava nos desejando muita sorte e muito dinheiro no bolso.

Lembro-me de que ficávamos quietos, assoprando nossas tigelas. E, após algumas colheradas, fugíamos para o quintal para não ter que tomá-la mais.

Não sei se é lembrança ou imaginação, mas, nessas horas, parece-me que minha avó ficava lá da cozinha, nos olhando com os olhos bem fechados, vendo tudo. Incrédula com o fato de estar presenciando a derrocada de uma tradição de séculos, bem ali, em suas mãos.

Mas mal sabe ela que, mesmo depois de mais de vinte anos, hoje eu escrevo com água na boca, só de tentar me lembrar do delicioso sabor do seu ozooni. E como me arrependo de não tê-lo tomado todas as vezes em que ela nos ofereceu.

Ah, e também, mal sabe ela que eu não tenho nenhuma saudade daquele homem, o que jogava futebol com a gente, o tal do Azoni.


Feliz Ano Novo a todos!

 

© 2018 Hudson Okada

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About the Author

Udê, ou Hudson Okada, nasceu na cidade de Matão-SP, no dia 02 de agosto de 1979. Mora em São Paulo desde 2005. É neto de japoneses e adora escrever sobre a cultura nikkei.

Faz parte do time de colaboradores do site Descubra Nikkei e do site Tempos Crônicos.



Atualizado em abril de 2017

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