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História nº 26 (Parte I): “Não volta, não! Fica aí no Japão!”

O despertador toca e Yurica logo se levanta. Toda manhã, antes do toque, ela já está acordada e, como sempre acontece, a primeira coisa que pensa é “Hoje eu escrevo”. Mas, mesmo passado um mês, ela ainda não tem certeza se vai ou não escrever aquela carta.

Na cama ao lado, a netinha Elisa dorme profundamente. “Que bom que ela não teve mais uma daquelas crises!”

Ao abrir as cortinas, lá fora ainda está escuro.

Um mês atrás lá fora estava assim, semiescuro. Era bem cedo, ela abriu a porta e notou que o Ricky estava rosnando de modo estranho.

Olhou para baixo e viu no chão da entrada um brinco caído. “Isto aqui é da Cris, mas por que está aqui?”.

Imediatamente pressentiu algo de ruim e foi correndo ao quarto de sua nora Cristina. Num relance, não notou nada de estranho, mas ao abrir o guarda-roupa viu que as roupas não estavam mais lá, nem os sapatos nem a bolsa de viagem.

“Como não é pela primeira vez, deve estar de volta na semana que vem”. E não ficou tão preocupada.

Mas passou um mês e Cristina não voltou. Nesse meio tempo, ela telefonou uma única vez: “Tudo bem aí? Eu estou agora em Maceió com meus colegas do hospital. Cuida bem da Elisa, tá?”. Nunca mais fez contato.

Preparando o café da manhã, Yurica relembrou esse episódio e pensou: “Desisto, não vou mais escrever”.

Yurica tem 58 anos. Seu marido tem 63 e está às vésperas da aposentadoria, mas se ele parar de trabalhar, a vida ficará muito difícil. O marido diz que quer ir trabalhar no Japão, mas Yurica não aprova de jeito algum. Pois como alguém que trabalha há 35 anos em escritório, vai aguentar serviço braçal? Ainda mais que ele anda se queixando ultimamente de dor lombar, cansaço, ao que Yurica procura não dar ouvidos.

Eles têm um filho único, Key, de 28 anos. Ele concluiu o ensino médio e ingressou numa empresa de seguros, onde ficou até dezembro do ano passado, quando foi demitido e até março deste ano não havia encontrado um novo emprego. Sua esposa então começou a reclamar: “Se eu tenho trabalho certo como enfermeira, por que você também não se esforça? Não pensa na família, hein?” Era assim todo dia, então, Key decidiu ir trabalhar no Japão.

E conforme tinha prometido, ele telefonava para a família todos os domingos à noite (manhã no Brasil). Com a esposa ele conversou apenas uma vez. Quantas vezes Yurica teve que mentir sobre Cristina: “É que ela teve plantão esta madrugada e agora está dormindo!”. Não poderia contar a verdade. Que a Cristina deixava a filhinha aos cuidados da Yurica e saía à noite com os amigos, não contaria de nenhum jeito. Porque se o filho soubesse, voltaria voando para o Brasil e sairia atrás da esposa. Caso isso vier a acontecer, ele perde o emprego no Japão!

Assim, Yurica resolveu não escrever, mas, aproveitando uma pausa nos serviços de casa, pegou caneta e papel.

Tudo bem? Parece que aí faz muito calor. Todo dia eu vejo pela NHK.

Fique tranquilo que todos estão bem aqui.

O dinheiro que você manda todo mês é bem-vindo, está ajudando muito! Seu pai logo vai se aposentar, mas eu vivo dizendo para procurar algum serviço para fazer.

A situação no Brasil vai de mal a pior e o número de pessoas desempregadas está aumentando.

Lembra o Jun que fez o ensino médio junto com você? Ele se formou na faculdade e encontrou emprego numa empresa muito boa, mas foi demitido e agora está vendendo pastel na feira.

Watanabe-san, que mora aqui na vizinhança, disse que a família inteira está se preparando para ir morar no Japão. Ele quer pôr os três filhos em universidade japonesa, porque no Brasil não dá mais.

Ah, sabe que no mês de julho foi uma surpresa ver as cerejeiras em flor? Parecia que era o Japão! Pena que as flores caem logo. A foto foi tirada no Parque do Ibirapuera e nela você vê a Elisa e eu. Bonitinhas, não? Nós duas...

Escreveu sobre várias coisas, mas não conseguiu falar sobre Cristina. “Desisto de vez. Não vai ser uma carta que vai resolver a questão”.

Estava na hora de ir buscar Elisa na creche. Pegou apressadamente a foto das flores de cerejeira e escreveu no verso, bem grande Não volta, não! Fica aí no Japão! E pôs dentro do envelope. Na volta, passaria no correio.

Parte II >>

 

© 2016 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção Nikkeis no Japão trabalhadores estrangeiros
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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