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https://www.discovernikkei.org/pt/journal/2016/8/23/hai/

Hai!

Semana sim, semana não, passo em uma mercearia japonesa que fica no quarteirão de minha casa, na Liberdade, para comprar alguns produtos básicos: sushi, shoyu, tofu, arroz... essas coisas. E foi nesse lugar que eu conheci uma garotinha que já é uma verdadeira atleta.

A chamo assim, porque, apesar de ainda muito nova – uns três ou quatro anos –, essa garota já é um ser fenomenal, incansável, fora de série, olímpico até.

Me lembro que, nesse dia, só durante o tempo em que eu estive por lá – sem brincadeira –, ela correu pelos corredores da loja durante mais de vinte minutos... Seguidos!!! Juro. Só de ouvir o seu trote eu sentia cãibras na batata de minhas pernas.

Pelo que percebi, ela deveria ser parente dos donos da mercearia; pois estava bem à vontade no ambiente. E também percebi que ela era nascida no Japão; pois o pessoal da mercearia só falava com ela em japonês, ao que ela respondia à tudo dizendo apenas: “Hai!”.

Outro detalhe: otênis dessa míni maratonista, além de ser todo colorido, era daqueles com luzinhas que piscam na sola do calcanhar.

O tênis da Maratonista Mirim

Assim, com a energia de todos os doces do mundo e com o estímulo das luzinhas piscando sob seus pés, a menininha voava baixo entre nós, clientes da loja.

Mas, apesar da atenção que essa figurinha despertava, só a vi de fato quando ela entrou com tudo no corredor onde eu estava e parou a apenas alguns centímetros de mim.

Devido ao quase acidente, a menina me olhou assustada, deu alguns passos para trás e, estendendo seus bracinhos nas laterais do corpo, curvou seu tronco para me fazer uma pequena reverência de desculpas. Como não sou acostumado à esse tipo de cumprimento, apenas sorri. Achei tudo muito educado de sua parte. Continuei em minhas compras.

Mas, logo em seguida, percebi um senhor muito idoso e muito largo – para não dizer muito obeso – que havia acabado de entrar na mercearia. Ele usava suspensório e gravata borboleta. Andava devagar o homem. 

No mesmo instante, lembrei-me da menina. Temi pelo pior. 

Fiquei atento. Se ela passasse por mim, pediria à ela para que parasse de correr. Só não sabia o como eu iria fazer isso se ela não entendesse português. 

Então a chamei e, com bastante entusiasmo, lhe disse através de gestos e de mímicas para que ela não corresse mais porque um senhor bem grandão havia acabado de entrar lá, na mercearia.

Com certeza não fui eficiente. Pois, arrumando o seu penteado – um rabinho de cavalo – e rindo muito, a menina só me disse “Hai!” e continuou em seu trote.

Quando finalmente usei a cabeça, pedi para um dos funcionários da mercearia para que chamasse a atenção dela... mas já era tarde:

O homem passeava com sua cesta por um dos corredores. A menina corria ao lado da fila dos caixas. O homem parou para apreciar os bolos. A menina virou-se para os corredores. O homem voltou-se para a prateleira à sua direita. A menina não o viu. O homem esticou um dos braços para tentar impedir a colisão. A menina fechou os olhos e se afundou na barriga do homem: Boing!

O homem não chegou a ficar bravo. Mas se assustou com a trombada e, curvado, começou a tossir. A menina deu alguns passos para trás e, espantada, ficou a olhar para o homem. 

Quando eu e um funcionário da mercearia nos aproximamos para acudi-lo, a menina abriu a boca. Mas, desta vez não foi para dizer “Hai!” e, sim, para dizer com o mais perfeito português:

- Nossa, tio, mas que barriga mole, hein!?!

 

© 2016 Hudson Okada

Brasil Japonês línguas
Sobre esta série

Arigato, baka, sushi, benjo e shoyu—quantas vezes você já usou estas palavras? Numa pesquisa informal realizada em 2010, descobrimos que estas são as palavras japonesas mais utilizadas entre os nipo-americanos residentes no sul da Califórnia.

Nas comunidades nikkeis em todo o mundo, o idioma japonês simboliza a cultura dos antepassados, ou a cultura que foi deixada para trás. Palavras japonesas muitas vezes são misturadas com a língua do país adotado, originando assim uma forma fluida, híbrida de comunicação.

Nesta série, pedimos à nossa comunidade Nima-kai para votar nas suas histórias favoritas e ao nosso Comitê Editorial para escolher as suas favoritas. No total, cinco histórias favoritas foram selecionadas.

Aqui estão as histórias favoritas selecionadas.

  Editorial Committee’s Selections:

  • PORTUGUÊS:
    Gaijin 
    Por Heriete Setsuko Shimabukuro Takeda

  Escolha do Nima-kai:

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About the Author

Udê, ou Hudson Okada, nasceu na cidade de Matão-SP, no dia 02 de agosto de 1979. Mora em São Paulo desde 2005. É neto de japoneses e adora escrever sobre a cultura nikkei.

Faz parte do time de colaboradores do site Descubra Nikkei e do site Tempos Crônicos.



Atualizado em abril de 2017

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