Em junho de 2015, o restaurante Maido de Mitsuharu Tsumura foi classificado entre os 50 melhores do mundo, segundo ranking da revista Restaurant. Foi um marco para a culinária Nikkei. Tsumura então declarou: “O mais lindo é que é a primeira vez na história que um restaurante Nikkei, com esse estilo de cozinha, entra numa lista como essa”. Maido ficou em 44º lugar.
Pouco antes, em fevereiro, o chef destacou na cimeira gastronómica Madrid Fusión 2015 que a cozinha Nikkei é o “resultado do encontro e do diálogo entre duas culturas”, a peruana e a japonesa. Não é comida japonesa com ingredientes peruanos ou comida peruana com ingredientes japoneses, mas sim uma mistura cultural.
Ele se usou como exemplo: “Eu pareço japonês, poucas pessoas na rua diriam por causa da minha aparência que sou peruano, até que saia aquela maldade da culinária peruana, de tempero e limão”.
O artista Eduardo Tokeshi costuma dizer algo semelhante: “Sou uma garrafa de sillao com Inca Kola dentro” (frase que admite uma variante do próprio Tokeshi: saquê em vez de sillao). Uma definição que poderia ser estendida ao resto do Nikkei e à culinária criada pelos imigrantes japoneses no Peru. Mitsuharu declarou certa vez ao jornal El Comercio: “Definir o que é a culinária Nikkei é como definir a nós mesmos”.
Um prato à base de ouriço que apresentou no Madrid Fusión, com lula, leite de tigre e nori, entre outros elementos, resumiu esse encontro: “Um prato esteticamente muito japonês, que quando se coloca na boca é uma explosão peruana”.
GASTRONOMIA NIKKEI EM TRÊS VEZES
No livro Nikkei é Peru , cuja autoria divide com a escritora Josefina Barrón, Mitsuharu afirma que a culinária Nikkei tem três etapas.
A primeira, localizada na década de 1950, quando os imigrantes japoneses preparavam a comida peruana em pousadas ou modestos negócios. Restaurantes como o La Buena Muerte, de Minoru Kunigami, nome capital da história da culinária peruano-japonesa, estão abertos. “Eles não sabiam que eram pioneiros de uma nova forma de cozinhar. Tratava-se de sobreviver fazendo o melhor que sabiam fazer. O sabor japonês estava se infiltrando no tempero crioulo.”
Kunigami foi autor de criações de sucesso como o sanduíche de tempura de prata e o tamale kamaboko.
“Todo império precisa de um fundador e esse poderia ser Minoru Kunigami (1918-2004), um chef que cativou uma população acostumada ao frango e à carne com sua proposta de peixes e frutos do mar. Kunigami reeducou o paladar Lima e popularizou os alimentos crus.”
A segunda, ambientada na década de 1970, quando chefs japoneses como Nobuyuki Matsuhisa (Nobu) e Toshiro Konishi chegaram ao Peru. “As empresas japonesas chegam e precisam ter uma cozinha própria, tão acostumadas quanto estão com sua dieta, técnica e sabores.” Cozinha tradicional japonesa.
Na terceira etapa, “os dois aspectos se unem. “Japonês e crioulo com toques japoneses.” Nasce o sushi Nikkei. “(O restaurante) Edo é um dos melhores representantes desta época. Edo levou o mundo dos makis para mais moradores de Lima, com preço mais baixo e sabores bem crioulos.”
A nova geração de chefs Nikkei tem como representantes reconhecidos Mitsuharu, Hajime Kasuga, Rafael e Toshi Matsufuji, Diego Oka e Yaquir Sato, entre outros.
DO PRIMEIRO JAPONÊS QUE DEU PASSO EM LIMA
A gastronomia Nikkei tem outra figura emblemática: Humberto Sato. Para ele, “a culinária Nikkei sempre existiu, desde os primeiros japoneses que pisaram em Lima. Não havia wasabi , (então os japoneses) kion ralado ou mostarda em pó comprada de outra forma. Não era a mesma coisa, mas no final das contas bastava, servia como wasabi. Surgiu por necessidade. Shoyu não veio do Japão, tiveram que fazer aqui, modificando e experimentando.”
Embora o mesmo oceano banhe os dois países, os japoneses aproveitaram melhor seus recursos. Sato lembrou que quando era criança “em Barranco, em Agua Dulce, o polvo saiu do mar. Todos correram, os japoneses os pegaram. Meu pai pescava caranguejos no cais de Água Dulce, em boa quantidade e grandes. Todo mundo decolou, para não cair e morder você. O polvo não foi consumido, o caranguejo menos ainda.”
Os japoneses contribuíram para que os moradores de Lima valorizassem os produtos que o mar dava e o ceviche fosse servido fresco. “Antes o ceviche era preparado às 8 da manhã, eram 3 da tarde e continuava sendo vendido. Agora não, você pede o ceviche e está pronto. Essa é a influência japonesa.”
Embora na prática já existisse, a culinária Nikkei só foi batizada como tal na década de 1980 pelo poeta Rodolfo Hinostroza, exultante com uma chita com pimenta preparada por Sato que o fez exclamar que havia descoberto o sabor Nikkei. Tudo o que ele precisava fazer era gritar “Eureka!”
RECONHECIMENTO MUNDIAL
A rigor, a culinária Nikkei deveria se referir a toda culinária feita por descendentes de japoneses fora do Japão, não apenas à culinária peruana. No entanto, o seu reconhecimento é tão grande a nível mundial que se tornou sinónimo da cozinha peruano-japonesa, como destacou o espanhol Ferran Adrià. Motivo de orgulho para os Nikkei peruanos, destaca Mitsuharu.
Já em 2011, o visionário Adrià, considerado o melhor chef do mundo, previu que a cozinha peruana que “funcionará melhor no exterior será a Nikkei”.
Há alguns anos, seu irmão Albert abriu em Barcelona o Pakta, um restaurante de cozinha Nikkei que em 2014 obteve sua primeira estrela Michelin, a maior distinção do mundo gastronômico.
Num vídeo promocional do Pakta, recorda-se que os imigrantes japoneses começaram a chegar ao Peru em 1899 e que “os produtos e técnicas da cozinha japonesa também viajam com eles, e juntam-se às cores e sabores da cozinha peruana”.
Pakta significa “união” em quíchua e oferece dois cardápios: Machu Picchu e Fujiyama. Uma declaração de intenções.
Na Espanha há outro representante da culinária Nikkei, o peruano Luis Arévalo, proprietário e chefe de cozinha do restaurante Kena em Madri, “onde o Peru encontra o Japão”.
“Falar de Kena é falar da culinária Nikkei, ou seja, daquela fusão das cozinhas japonesa e peruana resultante da onda de imigrantes japoneses que chegou ao Peru no final do século XIX. “Kena representa a evolução da cozinha Nikkei, muito mais cosmopolita e global, em que o produto, tratado com as técnicas mais tradicionais japonesas, torna-se protagonista absoluto de um ponto de vista muito pessoal”, afirma no seu site.
Arévalo trouxe a gastronomia Nikkei para a França, onde é diretor gastronômico do restaurante K'ORI, no centro turístico de Saint-Tropez. Lá servem, por exemplo, sushi e tiraditos.
Tsumura também trouxe a culinária Nikkei para Milão, Itália. Em julho participou do programa “Peru, alimenta sua alma” organizado pela Promperú, para apresentar pratos inovadores como polvo de azeitona com tofu e quinoa preta.
Nossa cozinha tem cada vez menos limites. Na China, o hotel MGM Grand Macau vai abrir em 2016 o restaurante AJI (para “ají” em espanhol e “sabor” em japonês), um projecto liderado por Mitsuharu, que garante que pela primeira vez na Ásia as pessoas vão desfrutar “do magia, os sabores e o caráter distintivo da minha culinária nikkei peruana.”
Na América do Sul, a culinária peruano-japonesa está presente em países como Argentina, Chile, Brasil e Equador, por meio de restaurantes como Osaka.
Mitsuharu Tsumura sempre lembra que a culinária Nikkei não começou com makis, mas com ceviches, e que pioneiros como Kunigami preparavam uma culinária crioula com influência japonesa. Cerca de 60 anos depois, a gastronomia que nasceu da necessidade e da criatividade dos imigrantes japoneses continua a evoluir e começa a conquistar o mundo.
SUMILLA: Embora na prática já existisse, a culinária Nikkei só foi batizada como tal na década de 1980 pelo poeta Rodolfo Hinostroza, exultante com uma chita com pimenta preparada por Sato que o fez exclamar que havia descoberto o sabor Nikkei.
* Este artigo foi publicado graças ao acordo entre a Associação Japonesa Peruana (APJ) e o Projeto Descubra Nikkei. Artigo publicado originalmente na revista Kaikan nº 100 e adaptado para o Descubra Nikkei.
© 2015 Texto y fotos: Asociación Peruano Japonesa