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História nº 24: Diário da menina que queria ser japonesa (5)

Leia História nº 24 (4) >>

30/7/2011

Oi, querido Diário, estou de volta!

Foi muito legal passar as férias de julho em São Paulo, mas 2 dias antes de voltar pra cá, eu soube o que aconteceu com a Marina e fiquei muito preocupada. Porque até 3 anos atrás a Marina estudava comigo na escola brasileira no Japão e este ano que voltou ao Brasil, ela não se acostumou com a vida aqui e nem está mais indo à escola. Por quê? Não consigo acreditar! Ela que é mais inteligente do que eu, fala japonês perfeitamente, é mais bonitinha...

Contei sobre a Marina para a Batchan e ela me disse: “Uma menina tão inteligente como ela, que não vai à escola e vive trancada dentro de casa é um verdadeiro desperdício. Como você é amiga dela de verdade, pode fazer alguma coisa por ela, pode ajudá-la e muito”. Assim ela me deu o maior apoio.

Aí comecei a pensar em muitas coisas. Já sei: toda vez que me sentar aqui para escrever, vou deixar escrito palavras de incentivo dirigidas à Marina e um dia vou emprestar este diário para ela ler. A Mammy disse que seria bom eu conversar com a Marina em português e também escrever cartas em português, pois assim ela ficaria mais confiante para usar a língua.

Está decidido! Diário, conto com você, tá?


22/8/2011

Hoje foi a “Festa do Folclore” na escola. Quando estava no Japão, eu não sabia que havia este tipo de festa nas escolas do Brasil comemorando o Dia do Folclore. Por isso,  desde cedo estava ansiosa  aguardando chegar a hora.

Cada classe decorou sua sala de aula com lindos enfeites e nela apresentou o resultado de um mês de pesquisa. E eu, pela primeira vez, fiz o meu trabalho através de desenhos. A professora me elogiou dizendo que estava muito bom. E esse trabalho foi um mangá contando a história de Curupira, um personagem bastante conhecido do folclore brasileiro. Legal, não acha?

De cabelos e olhos vermelhos e unhas azuis, ele parece um garoto levado e um pouco diferente dos demais. Mas preste atenção nos pés dele: seus tornozelos estão virados para trás! E é desse jeito mesmo que ele vive pulando pela floresta, protegendo e defendendo os animais.

Os alunos das outras classes paravam para ver com atenção. Mas a reação das crianças menores foi emocionante demais! Todas observavam com muita curiosidade e comentavam: “Quem é ele, hein?”, “Coitado, como ele consegue andar?”, “Andar pulando desse jeito é demais!”, “Ele é amigo de todos os animais, né?”.

Eu fiquei muito feliz porque, pela primeira vez na vida, algo feito por mim conseguiu chamar a atenção das pessoas. Se tiver outra oportunidade no ano que vem, estou pensando em fazer Kamishibai1, que eu acho que não existe no Brasil.

Esse mangá vai ficar exposto na escola até o fim do mês e depois disso vou mandar para a Marina ver.

As outras classes fizeram diversas apresentações como teatro, danças folclóricas, desfile de trajes regionais típicos. As garotas aqui no Brasil são muito vaidosas e, se o assunto é dança ou desfile de moda, todas elas querem participar. Elas querem mostrar que são bonitinhas, mas acho que é mais forte a vontade de atrair a atenção dos garotos.

A Batchan, como sempre, compareceu ao evento. Claro, ela disse que o meu Curupira foi um sucesso! Obrigada, Batchan!

Querido Diário, boa noite!


15/10/2011

Como hoje foi o “Dia do Professor” não houve aula. A Batchan foi professora do ensino fundamental, então ela sempre diz que no Brasil a profissão de professor não é valorizada pela sociedade, o que ela acha lamentável.

E hoje ela me contou uma história que tem a ver com isso. Em 1959, a Batchan estava no 1º ano ginasial (5ª série no tempo dela) e aconteceu durante uma aula de Matemática. A professora era descendente de alemães e não era de falar muito, mas de repente ela interrompeu a aula para dizer assim: “Vejam o exemplo do Japão. O príncipe herdeiro casou-se e pessoas de destaque, importantes mesmo, foram convidadas para a festa de casamento. Pois dentre os convidados estavaaquela que foi a sua primeira professora. Estava assim no jornal”. Naquela época, a Batchan não tinha entendido muito bem, mas depois que ela começou a dar aula, lembrou-se da antiga professora e finalmente pôde compreender o significado daquelas palavras.

Quando eu estava no Japão, cheguei a pensar em ser professora depois que ajudei a cuidar de crianças pequenas na escola brasileira que eu frequentava. Mas aqui no Brasil não dá. Eu vejo pelas crianças que moram na vizinhança, elas têm muita energia e não obedecem aos adultos. Por isso, acho que não vai dar.

Nunca pensei seriamente sobre o que vou fazer no futuro. Mas muitas vezes cheguei a pensar que seria algum trabalho ligado a design. Pode ser decoradora de interiores ou costureira de roupas para cães ou mangaká (quem desenha mangá), enfim, são muitas coisas que eu gostaria de fazer.

As minhas amigas têm opiniões diversas, mas as garotas que todo mundo fala que são kawaii2 escolhem ser modelo ou atriz. Foi assim com a Lumi, prima da Mammy. Ela disse que queria ser modelo ou atriz a uma amiga brasileira e logo veio a resposta: “Acho melhor você desistir. Aqui no Brasil não tem nenhuma modelo ou atriz de novela com cara de japonesa!” Resultado: a Lumi ficou um dia de cama e no dia seguinte foi ao cabeleireiro e tingiu de loira. Mas isto aconteceu 10 anos atrás e hoje a Lumi trabalha num restaurante de comida japonesa nos Estados Unidos. Seus cabelos, são pretos, naturalmente.

Nunca falei disso para ninguém, mas na verdade eu quero retornar ao Japão, estudar e arrumar um emprego por lá mesmo.

Querido Diário, só você pra me dar apoio, conto com você sempre!


Notas:
1. “Teatro de papel” feito com ilustrações que vão se sucedendo junto com a narração.
2. Termo em voga no Japão significando “lindinha”, “fofa”, “meiga”, “adorável”.

 

© 2015 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção trabalhadores estrangeiros Nikkeis no Japão
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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