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História nº 17: História de três gerações de decasséguis

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        BATCHAN  GUENKI1?
        JAPÃO  AGORA  MÓ  FRIO
        MAS  COMIGO  DAIJOUBU2 GUENKI  GUENKI.

                                                  -- DA  MARCELA

No papel de carta enfeitado com lindas flores, apenas estas palavras num japonês bem básico. Mas o envelope vinha recheado com muitas fotos. Foto comendo bento com colegas da fábrica. Foto com a professora de japonês, que está começando a aprender, e também colegas de curso. Foto tirada na festa de Natal usando vestido vermelho. Foto fazendo o sinal de V ao lado do primeiro boneco de neve que fez. Em todas, ela com seu sorriso, parecendo estar muito bem.

Depois que recebeu a cartinha da neta Marcela, Kimiko vive cantarolando “A vida, a vida é mesmo uma coisa surpreendente”. Pois a letra da canção “Ai sansan” diz bem o que é a sua própria vida.

- Que coisa interessante! Uns 30 anos atrás, a Kimiko surpreendeu todo mundo, dizendo de repente que ia trabalhar no Japão. Depois foi a filha dela. Em seguida, o filho e agora a neta! – disseram os parentes.

Isso mesmo, esta é a história de três gerações de decasséguis.

 

Tudo começou quando Kimiko estava com 47 anos de idade. O marido faleceu prematuramente e ela, uma simples dona de casa, não entendendo nada sobre negócios, não teve outro jeito se não passar para frente a mercearia do marido. E como morava nos fundos da mercearia, Kimiko foi para São Paulo à procura de um lugar para morar e de um emprego, levando junto os dois filhos.

Ficaram todos morando provisoriamente na casa da irmã mais velha de Kimiko, mas como estava difícil arranjar emprego, Kimiko decidiu ir trabalhar no Japão.

Na época, como seu filho de 16 anos estava começando o ensino médio e a filha de 18 estudando para o vestibular, restou a Kimiko ir sozinha para o Japão.

Trabalhou lá como cuidadora de idosos, pensando apenas em juntar dinheiro o mais rápido possível para poder voltar para sua família. Ela trabalhou desesperadamente.     

Até que se passaram dois anos e Kimiko retornou ao Brasil, mas infelizmente o país passava por uma crise aguda e o novo governo começou adotando medidas econômicas drásticas, como o congelamento dos depósitos bancários até julho de 1993. Em outras palavras, Kimiko teria que esperar um ano e meio para poder usar o dinheiro que havia conseguido juntar trabalhando no Japão.

Não teve jeito, retornou ao Japão para ser decasségui outra vez. Só que, desta vez, o filho também ia junto, então estava um pouco mais tranquila. Por mais que tivesse dificuldades, teria como enfrentar e vencê-las. Assim, os dois trabalharam duramente.

Bem nessa época, a filha de Kimiko também se encontrava no Japão trabalhando como decasségui. Com apenas vinte anos de idade, Érica havia se casado com Marcelo, mais novo que ela, tinham tido um filho, mas a vida não estava fácil. Então, junto com o marido foi trabalhar no Japão, mas Marcelo, além de não entender nada de japonês não se acostumou ao trabalho duro e acabou voltando ao Brasil em menos de um ano. Érica continuou lá durante dois anos. Mas o que ela jamais imaginaria era que sua mãe e agora o irmão também estavam no Japão.

Kimiko também jamais pensaria que sua filha estivesse no Japão. Como não tinha notícias dela havia muito tempo, toda vez que se lembrava da filha, ela orava para que estivesse bem onde quer que fosse.

Kimiko foi ao Japão pela segunda vez e acabou trabalhando cinco anos, após o que finalmente retornou ao Brasil. Um dia, tendo ido visitar a irmã mais nova, com quem não tinha tanto contato, acabou encontrando sua filha Érica lá.

Mãe e filha não se viam há sete anos! Ambas ficaram paradas, estáticas, parecia que o tempo também havia estacionado. Nisto, ouviu-se vindo lá dos fundos uma voz de criança dizendo “Espera!”, ao mesmo tempo que um cachorrinho todo branco pulou correndo para dentro da sala. “Espera, né!”, veio a menininha atrás e, logo, cachorrinho e menininha acabaram voltando para os fundos.   

Finalmente, Érica pareceu menos tensa e disse: “É a minha filha Marcela e eu estou aqui de novo, na casa da tia...”

Kimiko não estava acreditando. Sete anos atrás, ela voltou do Japão e imediatamente começou a procurar pela filha, mas não conseguiu, tendo de voltar novamente ao Japão. Estava muito comovida pelo reencontro, era como se fosse um milagre!

Kimiko conseguiu comprar a casa que tanto queria e foi morar lá com o filho e a filha. O filho havia conhecido a esposa nikkei no Japão, casaram-se no Brasil e tinha lhes  nascido o primeiro filho. Érica separou-se do marido e estava criando a Marcela sozinha.

E Marcela cresceu, formou-se na faculdade e está agora no Japão. Quer montar um escritório de design de interiores e está batalhando.

A história de sucessos de três gerações de decasséguis continua! VIVA!

 

Notas:

1. Tudo bem? Como vai? Eu vou bem, eu estou firme.

2. Tudo bem. Tudo em ordem. Pode deixar.

Tanto “Guenki” como “Daijoubu” são palavras muito usadas pelos decasséguis.

 

© 2014 Laura Honda-Hasegawa

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Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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