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História nº 23 (Parte II): Bem que eu queria dizer “Não precisa vir, não”

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Hiroyuki resolveu contar toda a verdade para Sanae-san. Que quando estava no Brasil, ainda estudante, nasceu-lhe um filho, então foi morar com a mãe da criança até que dois anos depois veio sozinho para o Japão trabalhar.

Sanae-san ouvia calada sem demonstrar raiva. Fazia esforço para não parecer chateada com a situação. Em seguida, ela foi até a cômoda, abriu a gaveta e tirou de dentro uma foto que entregou a Hiroyuki.

- Ele era bolsista do Irã e nós nos conhecemos na universidade. Começamos a namorar, mas, de repente, ele teve de voltar para o seu país devido à doença de seu pai. Como resultado, teve de ficar à frente dos negócios da família que vinha de gerações.

- Então, foi você que foi para lá?

- Não, eu nunca estive no Irã nem tenho intenção de ir.

“Então eles não puderam se casar”, pensou Hiroyuki, mas continuou ouvindo:

- Tanto meus pais como os pais dele se opuseram ao casamento e como também fiquei sabendo que ele tinha noiva lá, decidi que ia criar sozinha o nosso filho. E com o Farid ainda bebê, eu cheguei nesta cidade. Não ensinei meu endereço a ninguém e assim tenho vivido estes últimos nove anos.

Hiroyuki mostrou-se solidário, mas Sanae-san já havia se decidido. De repente, disse em voz alta:

- Eu quero que Hiroyuki-san seja muito feliz! Desejo de coração! E, quando sua esposa chegar, conversem os dois com calma. Afinal, depois de quatro anos vivendo separados, é hora de recomeçar a vida juntos!

Alguns dias depois, Hiroyuki ouviu do zelador do prédio em que Sanae-san morava que ela e seu filho haviam ido passar o período de festas na casa dos pais dela. Ele ficou aliviado, mas com o passar dos dias, começou a sentir solidão.

Hiroyuki trabalhou no Natal e aguardou com ansiedade a noite do dia 31.

Na primeira vez que passou o dia 31 no Japão, ele ligou para a esposa no Brasil, mas devido ao fuso horário, ainda era de manhã lá e ela estava indo ao cabeleireiro, então a conversa acabou em três minutos. Já no ano seguinte ele pôde conversar com o filho. No outro ano, usando o Skype, ele e o filho bateram papo e até se divertiram através do webcam, fazendo caretas e rindo a valer.

Na noite do dia 31 do ano seguinte, porém, ele passou trancado no quarto, quieto. Seu amado filho havia falecido meses antes.

E este ano, Hiroyuki estava ansioso para assistir ao Kohaku Uta Gassen¹, que costumava ver quando estava no Brasil. Sentou-se à frente da televisão, quando, lá fora alguém gritou: “Hiro! Hiro está?”

Abrindo a porta, viu que eram seus colegas Keiji, Toshi e Silva. Visivelmente embriagados, os três convidaram Hiroyuki para sair. O destino era um salão situado no segundo andar de um velho prédio.

Enquanto Hiroyuki estava parado na entrada sem saber o que fazer, seus colegas rumaram para a mesa e começaram a falar ruidosamente com a turma.

Daí a poucos minutos, ouviu-se o ritmo do pandeiro e dançarinas em trajes coloridos entraram sambando. Eram três dançarinas, cujos requebros levaram a plateia ao delírio. Logo em seguida, a dançarina mais clarinha começou a sambar sozinha, gingando e mostrando todo o seu charme. Foi aí que o público aplaudiu ruidosamente pedindo bis.

Ao final da apresentação, cada uma delas falou o seu nome. A mais clarinha disse chamar-se Rose. Foi quando Hiroyuki se sobressaltou, pois Maria do Rosário sempre detestou seu nome e, desde o começo, pediu que a chamasse por Rose. E essa “Rose” estava saindo, quando foi cercada por uma multidão que queria tirar fotos. E enquanto ela fazia pose, Hiroyuki aproveitou para se aproximar-se mais ainda.

Então seus olhos se fixaram na Borboleta e Flor tatuadas no braço direito da jovem. Lembrou que o motivo da primeira briga do casal tinha sido a tatuagem que Rose tinha feito às escondidas, ela que sabia que não podia fazer gastos supérfluos.

Sem mais dúvidas, Hiroyuki abriu caminho, chegou mais perto e estendeu o braço na direção dela, quando um sujeito grandão parecendo ser o empresário segurou-lhe a mão.

Nisto, ela reconheceu Hiroyuki e disse “Pode deixar. É o meu ex”. E apresentou o homem a Hiroyuki: “Este é o Xande, meu empresário e estamos morando junto. Eu tenho mais um lugar para me apresentar. Tchau!”

Vendo a ex-esposa despedir-se apenas com um “Tchau”, Hiroyuki ficou aturdido, mas não demorou a se recompor. Estava pronto para aguardar o dia clarear e começar um novo ano.

Desta vez eu vou ser feliz!

Nota

1. Tradicional programa musical da NHK de encerramento de ano, em que competem o time vermelho (fem.) e o time branco (masc.). 

 

© 2014 Laura Hasegawa

Brasil dekasegi ficção trabalhadores estrangeiros Japão Nikkeis no Japão
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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