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História nº 23 (Parte I): Bem que eu queria dizer “Não precisa vir, não”

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Naquele dia, Hiroyuki desligou o telefone e, por instantes, ficou paralisado.

As palavras de sua mulher que ficara no Brasil soaram estridentes: “Estou chegando aí”. A princípio ele pensou que fosse brincadeira, mas Maria do Rosário falava sério: “Eu não tinha falado antes? Que eu ia atrás até o Japão? Então, chegou essa hora”.

Ele estava confuso. Até então, para ela telefonar de tão longe havia somente um motivo: dinheiro. Sempre querendo mais dinheiro. Mas, desta vez, nem tocou no assunto e, entre risos, contou que tinha arranjado emprego e que nunca tinha imaginado que existiria emprego tão divertido. Ao fundo, ouviam-se o ritmo do samba e vozes de muitas mulheres.

“Mas quando vai ser isso?”, ele quis saber e a mulher apenas disse: “Final do ano... no tempo das festas. Festas!”

Depois, não deu mais notícias. Hiroyuki passava os dias bastante inquieto. Enquanto trabalhava estava tudo bem, mas, voltando para casa, nem mesmo ele entendia por que o desassossego.

Certo dia, ele se abriu com um colega de trabalho mais chegado, que se espantou muito e, ao final, perguntou: “E a Sanae, como é que fica?”

Pois é, este era o problema.

Hiroyuki estava com 21 anos quando foi ao Japão. Aos 19 foi pai e morava num pequeno apartamento com a esposa, o filho pequenino e a sogra doente. Certo dia, a sogra disse: “Se continuar desse jeito, nós quatro não vamos ter o que comer!”. Foram exatamente estas palavras que fizeram Hiroyuki tomar a decisão de ir trabalhar no Japão.

Lá, ele trabalhou bastante e fez planos também. Passados cinco anos, iria tirar uma folga para voltar ao Brasil. Seria na época em que seu filho entraria no primeiro ano da escola fundamental e ele queria festejar indo revê-lo.

Só que essa oportunidade se perdeu em questão de segundos. Hiroyuki foi avisado no trabalho. Seu filho havia sido atropelado por um ônibus, tendo morte instantânea. E isto foi pouco antes de completar seis anos.

Ele não chegou a tempo ao enterro, mas foi visitar o túmulo do filho e deu-lhe um comovido adeus. Depois disso, nunca mais esteve no Brasil.

De volta à sua vida no Japão, ele se empenhou ainda mais, não somente no trabalho, mas também nos estudos. Quando vivia no Brasil, concluiu o ensino médio e estava se preparando para entrar na faculdade, quando conheceu Maria do Rosário e ela logo engravidou. Por causa disso, não prestou o vestibular e foi trabalhar, mas sustentar a família estava difícil demais. Assim, foi trabalhar no Japão e ficou mandando dinheiro para a família. “É chegada a hora! Quero fazer algo por mim também!” e começou a aprender japonês. 

A professora da escola de japonês era Sanae Inoue. No começo, Hiroyuki ficava tão tenso que não conseguia falar nenhuma palavra. Os outros alunos eram originários da Itália, Estados Unidos e Coreia e todos eram bem melhores do que ele, justamente o único descendente de japonês.

Mas a professora Sanae, com muita paciência, conduziu o seu aprendizado, tanto que, meio anos depois, Hiroyuki foi aprovado para o nível seguinte com ótimo resultado.

Ele lamentou não poder mais ver a professora Sanae, mas procurou se conformar pensando: Um cara como eu que nem fez faculdade, um operário e ainda por cima brasileiro, ela nem vai mais se lembrar.

Hiroyuki fazia parte de um time de futebol formado entre os decasséguis. Num domingo de treino, um menino apareceu para assistir. Pouco tempo depois, veio uma mulher que começou a falar com o menino sem parar, mas ele nem lhe respondia, continuando a acompanhar o treino com entusiasmo.

Terminado o treino, a mulher já ia indo embora com o menino, quando Hiroyuki lhe dirigiu a palavra: “Se quiser, pode vir assistir ao nosso treino quando puder”.

“Muito obrigada. É que meu filho é louco por futebol”, respondeu a mulher.

Na mesma hora, Hiroyuki perguntou surpreso: “Não é a professora Sanae? Lembra-se de mim?

Depois disso, Farid sempre estava assistindo aos treinos. Ele foi admitido no time infantil e começou a dizer que queria ser jogador de futebol.

Farid era filho de Sanae-san com o marido iraniano e, como perdera o pai quando ainda era bebê, logo se apegou a Hiroyuki. Quem os visse, pensaria que seriam pai e filho.

Hiroyuki e Sanae-san começaram a namorar e até estavam pensando em casamento. Mas, até aquele momento, ele havia escondido que tinha esposa no Brasil. Começava a tribulação!  

 

Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção trabalhadores estrangeiros Nikkeis no Japão
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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