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A minha experiência como dekassegui

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Sou filho de pais japoneses (meu pai é de Kagoshima e minha mãe é oriunda de Ehime), de modo que meus sentimentos com respeito ao Japão sempre foram muito arraigados. Pelo menos foi assim até quando viajei para o Japão.

Sonhava em conhecer a família dos meus pais, apesar de que esse sonho não passava de uma utopia devido ao alto custo da passagem aérea, estadia, barreira do idioma e minha baixa renda como servidor público. Como profissional e funcionário do Estado peruano, eu recebia um salário baixo como todo empregado público; mas este era incrementado com o salário da minha esposa que trabalhava como professora, o que nos permitia viver confortavelmente sem maiores problemas financeiros. Morávamos em Madre de Dios [região peruana localizada ao sul do Acre] e podíamos viajar de férias para a capital com toda a família e ter nossa casa própria; ou seja, desfrutávamos de uma pequena mobilidade financeira. Mas a situação ficou complicada quando aumentaram os gastos familiares com o ensino superior dos filhos mais velhos. Por essa razão, eu tive que tomar decisões com respeito ao futuro da minha família. Assim sendo, em novembro de 1990 deixei para trás a minha estabilidade profissional e, junto com um irmão mais velho, decidi viajar para o Japão.

O estopim para esta decisão ocorreu em 7 de agosto de 1990, quando o então primeiro-ministro e ministro da Economia, Juan Carlos Hurtado Miller, anunciou o memorável "Fujishock", e suas últimas palavras foram "Deus nos ajude"—porque a partir da meia-noite daquele dia, a gasolina, por exemplo, passaria de 21.000 intis [moeda peruana de 1985 a 1991] para 675.000 intis por galão (um aumento de 30 vezes), como também subiria o preço do pão, leite, etc. Tudo isso porque o ex-presidente, Alan García, tinha quase toda a economia subsidiada, e sofríamos com a hiperinflação. Ter um emprego estável como alto funcionário do Estado, e ser um profissional com uma esposa também profissional era o suficiente apenas para sobreviver. Foi então necessário que eu tomasse uma decisão.

Como motivação para embarcarmos nesta aventura, já havíamos obtido o "koseki" [registro de família japonês] —porque vários sobrinhos já estavam trabalhando no Japão—além de algum dinheiro para a viagem e as passagens para Lima. O problema era como "corrigir" as nossas certidões de nascimento, pois nelas constava o primeiro nome peruano do meu pai (Antonio) ao invés do seu nome verdadeiro (Kinsuke), o qual estava registrado no koseki. Ao conversar com vários outros peruanos, me deram a solução: apagar o primeiro nome do meu pai e escrever por cima o seu nome de nascença. Com esta "solução", viajamos para Lima; ao vistoriar os documentos, a empresa contratante não notou a "correção" e fomos contratados para trabalhar numa fábrica. A empresa financiou o custo da passagem Lima-Narita, nos ofereceu acomodações gratuitas, alimentação subsidiada em 50% pela fábrica, um salário de 1.250 ienes por hora (10 a 11 dólares por hora), algumas horas extras por dia pagando 50% acima do salário normal (por hora), um bônus de 1.500 dólares se não ficássemos doentes, além de 3.000 dólares como compensação por tempo de serviço e um subsídio de 50% do valor da passagem de volta caso resolvêssemos retornar ao Peru depois de um ano de contrato. De casa até a fábrica eram apenas 15 minutos a pé. Sem maiores esforços, eu podia contar com um salário mensal de 2.800 dólares, o que me permitia remeter 40% para cobrir as despesas familiares no Peru, economizar um pouco e ainda pagar as despesas no Japão. Foi um período de anos dourados.

No dia 3 de dezembro de 1990, demos início à viagem—um total de 30 peruanos, supostamente todos nikkeis—viajando via Miami e Detroit (E.U.A.) para o aeroporto de Narita, sendo recebidos pela empresa que, por gentileza, nos transportou por via terrestre até a área de Shonandai em Fujisawa, [na prefeitura de] Kanagawa, a 45 minutos de Tóquio, onde ficava uma fábrica da empresa. Permanece na minha mente e no meu coração uma gratidão à empresa Isuzu, que soube nos valorizar e nos entender até o fim, estipulando claramente que fôssemos resolver a nossa documentação para então retornarmos a ela. Mas estas esperanças desapareceriam anos mais tarde devido à crise econômica mundial.

Pisar em solo japonês, especialmente para um nissei como eu, significava um sonho tornado realidade; meus olhos até se encheram de lágrimas de alegria. Foi uma experiência inesquecível. Nós nikkeis peruanos nos considerávamos japoneses no Peru, mas não sabíamos que os japoneses nos tratariam como meros estrangeiros ("gaijin").

A foto abaixo tem como fundo uma residência pertencente à Casa Imperial em Tóquio.

   

A empresa nos instalou em seu "ryo" (uma espécie de hotel [ou dormitório] com loja, restaurante, piscina, cabeleireiro), e enquanto o visto estava sendo processado pela Imigração, ela nos ajudava com alimentação e acomodações. Apesar disso, a demora era angustiante porque os dias iam passando e não podíamos começar nosso trabalho na fábrica. Depois de quinze dias, descobriram que os documentos de um dos companheiros peruanos eram falsos e ele foi deportado imediatamente. Depois de 30 dias no Japão, fomos oficialmente contratados pela Isuzu, após um treinamento teórico e prático de 15 dias, enquanto o departamento de imigração prosseguia verificando a nossa documentação. Os dias se passaram, e depois de três meses fomos chamados ao departamento de imigração em Tóquio, onde recebemos a má notícia que haviam carimbado APPLICATION [PEDIDO] (um carimbo vermelho indicando a data de saída do país), porque havia problemas com a nossa papelada. Eles nos deram um prazo de 90 dias para deixarmos o país. Como a empresa contratante já havia investido em nós (passagem aérea Lima-Narita, alimentação, seguro, etc.) continuou nos empregando até que pagássemos as nossas dívidas. Chegou o dia marcado, 30 de junho de 1991, e fomos transportados de volta para o aeroporto de Narita para deixar o país, quase que como deportados. Apenas um de nós recebeu o visto: um peruano que nem tinha características faciais de nikkei, mas que foi o único com "boa documentação em ordem". Dos 30 peruanos que viajaram conosco, apenas uns 20% tinham traços orientais e apenas dois (eu e meu irmão) éramos filhos de pai e mãe japoneses. A ironia era que também tínhamos documentação "foleira".

A minha estada no Japão, que durou mais de seis meses, foi uma experiência inesquecível. Eu não conhecia o idioma, mas isso não foi empecilho para que eu viajasse de trem até Shizuoka, Tóquio, Yokohama, Tochigui, Gunma, etc.; rodasse no "shinkansen" [linhas de trens de alta velocidade]; percorresse as lojas de eletrônicos para [retornar ao Peru] com a mais avançada tecnologia; e visitasse os meus parentes peruanos. Não pude visitar os meus parentes [japoneses]—que eu tinha ouvido dizer moravam em Kagoshima—porque eu não falava o idioma e era necessário economizar ao máximo. Uma das minhas sobrinhas já tinha viajado para Kagoshima, onde havia conseguido encontrar alguns parentes do meu pai.

Para um descendente legítimo como eu, que se considerava japonês, o fato do visto ter sido negado devido ao problema com a minha certidão de nascimento, me deixou cheio de raiva, de ódio—de mim e dos japoneses, e dos peruanos também porque em nenhum destes dois países eu me sentia bem recebido. Mas ao mesmo tempo, eu sentia emoções conflituosas. No meu país, nos chamam de "china", "olho puxado", "cara de prato"—adjetivos pejorativos que de certa forma incomodam, são humilhantes. Tendo que enfrentar a recusa do visto como havia acabado de acontecer, me senti rejeitado tanto no Peru quanto no Japão. Não era de admirar que viessem à tona estes sentimentos conflituosos, enquanto que a culpa (os seres humanos nunca admitem seus erros, sempre preferem culpar os outros)—neste caso, eu culpei o meu pai por ter sido batizado e trocado seu primeiro nome. Mas ao mesmo tempo, eu me culpava por ter "arranjado" a minha partida de modo "enrolado", "burro"; eu me perguntava porque não havia recorrido à justiça para corrigir legalmente a  minha certidão de nascimento. Enfim, foram muitos dias de sofrimento moral, e por um longo tempo eu disse a mim mesmo que nunca mais regressaria ao Japão. Mas depois de um ano, reconsiderei a questão e disse a mim mesmo que a culpa era minha. Foi então que peguei um advogado e dei início ao processo de correção da minha certidão de nascimento, inserindo nela—através de uma resolução judicial—o primeiro nome verdadeiro do meu pai.

Já se passaram mais de 23 anos dessa  imigração ao Japão e de vez em quando surge a vontade de viajar para o Japão—mas é claro, agora só de férias. Sabemos que a crise financeira também afetou o Japão, e não existem mais os anos dourados da década de 90; muitos peruanos retornaram ao Peru, mas permanece a saudade de um país próspero onde tem valor a palavra, a honra, a disciplina, a honestidade, a tecnologia e, acima de tudo, um país onde existe segurança pública—um país onde você pode andar a qualquer hora do dia ou da noite sem ser assaltado. O Peru deixou de ser um país com muita pobreza, mantendo um crescimento sustentado da sua economia, mas ainda permanece o seu problema crítico: a falta de segurança pública, o crime organizado e a delinquência; ocorrem crimes cada vez mais assustadores sem que nenhum poder do Estado se atreva a solucioná-los.

 

© 2014 Santos Ikeda Yoshikawa

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Sobre esta série

O que um nome quer dizer? Esta série apresenta histórias que exploram os significados, origens e as histórias ainda não contadas por trás dos nomes pessoais nikkeis. Estes podem incluir primeiros nomes, sobrenomes e até mesmo apelidos!

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About the Author

Santos Ikeda Yoshikawa é engenheiro químico, especializado em planejamento e orçamento, como também consultor em projetos de investimento público e funcionário do Projeto Especial Madre de Dios. Ele tem mais de 34 anos de experiência no setor público.

Atualizado em abril de 2015

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