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História nº 16: Embarque São Paulo 18:59

O Aeroporto de Guarulhos está lotado por um grande número de pessoas com muitas bagagens. Estamos em plena época de férias de verão e os brasileiros estão viajando para o exterior cada vez mais.

- Ouvi falar que este ano está fazendo muito frio no Japão. Cuidado para não pegar um resfriado, a Akari e você, viu? E me avise quando chegar lá -despede-se a avó com ar de preocupação.

- Pode deixar, batchan. Vou cuidar direitinho da Akari e gambaru, né?Batchan também se cuide.

 

Três anos atrás, bem nesta época, Mayumi voltou de repente do Japão. Apenas sua avó aguardava-a no aeroporto.

Mas nem em sonhos ela imaginaria que Mayumi estava trazendo junto uma criança de colo. Tinham conversado por telefone algumas vezes, mas a avó nem ficara sabendo que Mayumi tinha se casado.  

- Batchan! Esta aqui é a Akari. Agora batchan virou bisa!

A avó chorou de alegria. Ver as duas tão bem dispostas era mais que tudo.

Mayumi voltou a morar na casa da avó e arrumou um emprego. Como havia trabalhado na cozinha de uma empresa no Japão, ela logo achou trabalho num restaurante.

Esse restaurante ficava no bairro Oriental em São Paulo e, desde que foi inaugurado, tornou-se um ponto de encontro dos decasséguis. Nos sábados, à tardinha, formava-se uma longa fila, onde ninguém se importava com o tempo de espera, pois era costume falar com qualquer pessoa fazendo a pergunta inicial: Em que lugar do Japão estava? No caso de serem os dois decasséguis, a conversa ia longe e, mesmo quem não era decasségui, ouvia com interesse e até entrava na conversa.

Inicialmente, Mayumi trabalhava apenas na cozinha, mas na falta de pessoal passou a servir as mesas. Foi num domingo assim que, indo atender à mesa do fundo, deparou-se com uma pessoa inesperada.

Embora com uns quilos a mais, era a Satie sem dúvida. Por seu lado, Satie também reconheceu Mayumi e começou dizendo:

- Há quanto tempo, Mayumi! O Hiroki cansou de te procurar, até faltava no serviço... Ah, sabia que ele já voltou ao Brasil?

Nem deu para ouvir mais, pois estava em pleno serviço, mas naquela noite as lembranças do passado vieram à tona e ela custou para pegar no sono.

Satie era colega de serviço de Hiroki na época em que ele e Mayumi se conheceram. Foi na cidade de Hamamatsu, durante um show de uma banda brasileira de rock. Logo começaram um relacionamento e, meio ano depois, Mayumi soube que estava grávida. Ambos ficaram muito felizes, mas o que Hiroki não contou a Mayumi era que ele não estava oficialmente separado da primeira esposa.

Mayumi trabalhou no refeitório da empresa até chegar a hora de dar à luz. Depois, ela e o bebê foram morar num pequeno apartamento junto com Hiroki, que tinha que dirigir até Hamamatsu para ir ao trabalho na fábrica.

Um dia, ao voltar com o bebê do posto médico, Mayumi encontrou o apartamento arrombado, com os poucos móveis derrubados, roupas e objetos espalhados pelo chão.

Ela entrou em pânico e logo telefonou para Hiroki, mas não conseguiu falar com ele.

Sem outro jeito, entrou na sala e, quando estava acomodando o bebê sobre um pano, tocou o celular. “Mulher imunda que nem você, que morra!”, dizia uma voz de mulher em português.

Foi nesse momento que Mayumi sentiu estar despertando de um sonho ruim. A primeira esposa de Hiroki era brasileira e, se ela se separasse oficialmente do marido nikkei, não poderia permanecer no Japão e isso ela não queria de jeito algum. Diziam que ela administrava um salão de beleza que prosperava a olhos vistos.

Mayumi não aguardou a volta de Hiroki e deixou a cidade para sempre. Passou por muitas dificuldades, mas, no final das contas, conseguiu retornar ao Brasil.

 

Aeroporto de Guarulhos, 17h30m. Mayumi atravessa o mar de gente e se dirige ao portão de embarque. Acena com um sorriso dizendo : Até a volta!

Está indo trabalhar no Japão pela segunda vez. Correndo atrás de sonhos e esperanças.   

 

© 2014 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção trabalhadores estrangeiros Nikkeis no Japão
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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