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História nº 22 (Parte I): “Gláucia” – por onde ela anda agora?

Dizendo que queria ser cabeleireira, Kazue largou os estudos no ensino médio e deixou a cidade onde havia se criado para ir para São Paulo. Lá ficou durante um ano praticando no salão que seu tio administrava, concluiu o curso e conseguiu o certificado de profissional. Depois, ficou trabalhando no mesmo salão.

Certo dia, por sugestão do tio, Kazue participou de um concurso nacional de cabeleireiros e se saiu muito bem, pois foi uma das vencedoras. A partir daí, começou a alimentar sonhos mais altos.

O “Salão da Rosa” que seu tio e sua tia haviam começado 40 anos antes tinha uma fachada modesta e a grande maioria da clientela era de senhoras nikkeis que não seguiam a moda, gostavam mesmo de fazer permanente como antigamente.

Kazue gostava mesmo era do estilo de cabelo das cantoras e atrizes brasileiras que via na televisão. Quando participou daquele concurso de cabeleireiros, conheceu muitos profissionais e foi bastante elogiada e até disseram: “Quem sabe, um dia você será hair stylist de gente famosa”.

A partir de então uma nova Kazue estava para nascer: em vez de continuar no salão de seu tio, resolveu em trabalhar em salão de brasileiros.  E, desejando ser aceita no novo ambiente, decidiu mudar a sua aparência e até seu nome. Os belos cabelos lisos e pretos ela tingiu de castanho claro vermelho. A maquiagem ficou mais forte, do jeito que as brasileiras gostam. Largou a camiseta e o jeans e adotou os looks da moda. Também o nome “Kazue” - muito difícil para o brasileiro pronunciar - trocou para “Gláucia”. Nos finais de semana passou a comparecer em eventos de beleza e estética.

Um dia, ela disse ao tio que fora convidada para trabalhar num salão de beleza localizado nos Jardins, que até teria à disposição um apartamento perto. O tio ficou pasmo, tão repentina tinha sido a notícia, mas, pensando no futuro da sobrinha, concordou e deu-lhe o maior apoio.

Kazue dedicou-se muito e foi se aperfeiçoando cada vez mais. Quatro anos depois, foi mandada à França para conhecer novas técnicas. E depois de onze anos trabalhando no salão dos Jardins, ela foi escolhida para gerenciar uma nova filial.

Esse salão ficava num bairro muito frequentado por jovens. Eram estudantes universitários, gente ligada ao cinema, à televisão, às artes plásticas, que se reuniam nos alegres cafés e casas de chope. E o salão, que oferecia serviços de cuidados com os cabelos e estética, atendia a clientela masculina também.

Foi nessa época que Kazue começou a se distanciar dos tios e também da família que deixara no interior. Não telefonava nem comparecia às festas de final de ano. O fato era que a vida de Kazue, agora com 33 anos, estava passando por uma grande mudança.

Kazue, ou melhor, Gláucia, estava apaixonada pelo Jackson!

Oito horas da noite, o salão acabava de fechar as portas e Kazue se preparava para entrar no carro, quando foi interpelada pelo jovem:

- Desculpe, mas não é a Keico?

Ela virou-se e respondeu:

- Eu sou Gláucia.

- Mas se parece, se parece muito. Com o primeiro amor da minha vida...

Kazue não lhe deu atenção, entrou rapidamente e deu partida. O jovem permaneceu parado, acenando sorridente, na expectativa de vê-la de novo.

Dias depois, ele apareceu no salão dizendo que queria ser atendido pela “Gláucia”.

Kazue ficou espantada, mas no fundo sentiu-se lisonjeada. O jovem pediu um tratamento capilar e, enquanto era atendido, começou a falar sem parar: que o seu nome era Jackson, que tinha 21 anos, que desde criança se deu muito bem com japonês, fazia dois anos que trabalhava como modelo e ainda estudava cinema na faculdade.

Duas semanas depois, Jackson pediu que Kazue o presenteasse com roupas de grife como blêizeres e camisas, pois não tinha dinheiro.

Um mês depois, ele organizou uma festa no apartamento de Kazue, convidando seus amigos e novamente Kazue bancou todas as despesas.

Alguns meses depois, ele já estava instalado no apartamento dela e foi aí que os problemas aumentaram. Jackson começou a usar de violência e as exigências foram aumentando numa escalada violenta. Uma colega viu as manchas arroxeadas no rosto e braços de Kazue e aconselhou-a a dar queixa na polícia, mas Kazue ficou temerosa que Jackson revidasse. Em vez de procurar a polícia, pediu guarida na casa da colega.

Mas não adiantou, pois Jackson descobriu o paradeiro dela e foi buscá-la à força.

Passados alguns dias, a colega de Kazue estava vendo televisão, quando deu com a foto de Kazue durante o noticiário:

- Não é a Gláucia?! O que será que aconteceu com ela?!

História nº 22 (Parte II) >>

 

@ 2014 Laura Hasegawa

Brasil dekasegi ficção trabalhadores estrangeiros Nikkeis no Japão
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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