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História nº 21: Mitchan e a “Obaatchan do Japão”

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Foi num dia depois da passagem do tufão. Manhã quente e abafada, Mitchan estava a caminho da escola com a mochila vermelha nas costas e levando em uma das mãos a garrafinha de água para matar a sede.

Ela não saberia dizer qual calor era pior: do Brasil ou do Japão. Até meio ano antes, ela morava no Brasil, onde nas tardes de sol forte, enquanto as amigas brincavam ao ar livre, ela preferia ficar na varanda lendo aqueles livros de histórias que tanto gostava. E sua Batchan1 fazia um delicioso sorvete de coco que ela tanto gostava. Não tinha comparação, no Brasil tudo era bom.

Mas tudo mudou depois que a Batchan ficou precisando de cuidados constantes devido à idade. Os filhos resolveram interná-la numa casa de repouso e a casa em que ela morava foi alugada para poder pagar as despesas. Por causa disto, Mitchan e sua mãe ficaram sem casa para morar.

Assim, Mitchan foi levada pela sua mãe para o distante Japão. Sua mãe alugou um apartamento antigo e apertado e começou a trabalhar numa fábrica; Mitchan passou a estudar numa escola para crianças brasileiras. E como essa escola ficava em outra cidade, tinha que estar pronta às 5 e meia da manhã para pegar a van escolar.  Ela, que estudava no terceiro ano do ensino fundamental, estava gostando da nova escola, pois as matérias não eram diferentes da escola do Brasil.

Acontece que na fábrica onde sua mãe trabalhava, as horas extras foram reduzidas, o salário abaixou e assim, depois de alguns meses, Mitchan teve de sair da escola de alto custo e ingressar na escola pública frequentada pelas crianças japonesas em geral. Sua mãe não teve outra alternativa, mas ficou bastante apreensiva. Até então, Mitchan sabia apenas duas palavras em japonês: “gohan” e “taissô”. Nas refeições Mitchan sempre repetia o arroz branco dizendo “Gohan” e na época em que a Batchan ainda estava forte, toda vez que se preparava para ir ao Radio Taissô, a pequena Mitchan mostrava que queria ir junto dizendo “Taissô, taissô”. No Japão, eram tantas coisas diferentes para se acostumar, mas algo deixou a menina bem animada: era poder ir a pé para a escola.

Já nos primeiros dias a caminho da escola, certa casa chamou-lhe a atenção. Era pequena e lembrava aquelas casinhas que ilustravam as histórias que tanto gostava. Na frente, um canteiro com muitas flores de cores variadas. Na janela, graciosas cortinas rendadas. 

Desse dia em diante, passou a prestar atenção nela toda vez que passava em frente. “Quem será que mora aqui?”. E sua curiosidade ia aumentando.

Justamente um dia após a passagem do tufão, Mitchan ia passando na frente da casa dos contos de fadas, quando, de repente a porta se abriu e uma senhora apareceu, carregando dois vasos nas mãos.

No exato instante em que a viu, Mitchan levou um susto e parou: “Nossa! Como se parece com a Batchan! O mesmo corte de cabelo, o avental, os óculos redondinhos... É a Batchan!”.

A senhora, por sua vez, deixou cair um dos vasos e também ficou parada, olhando como se reconhecesse a menina!

Mitchan correu imediatamente para perto do vaso caído. Estava quebrado, mas as flores arroxeadas estavam intactas presas pela raiz.

- Ainda bem que não aconteceu nada com elas – disse a senhora com um sorriso, mas olhando a menina com a mochila nas costas, falou preocupada:

- Não vai se atrasar para a aula?

A menina não disse nada e ficou na frente da senhora sem se mover.

- Agora você vai para a escola que eu vou arrumar outro vaso para replantar as flores. De tarde, eu espero você passar aqui, combinado?

Mitchan sorriu de alegria e foi correndo para a escola.

Terminada a aula, voltou correndo pelo mesmo caminho.

Quatro e meia da tarde, de fato, a senhora estava a aguardando na porta.

- Como você se chama?

De tão afobada, a menina respondeu: “Emily” e tentou dizer no seu japonês precário que preferia ser chamada de “Mitchan”, que era como sua Batchan a chamava quando estava no Brasil.

- Então, Mitchan, é melhor você ir para casa, pois sua mamãe deve estar esperando, não?

Mitchan olhou para baixo e fez “Não” com a cabeça. Queria falar que, logo que saía do serviço na fábrica, a mãe tinha que fazer bico na padaria, mas não conseguiu.

A senhora pareceu adivinhar que Mitchan era de uma família de decasséguis e havia deixado preparado um “obentô”2 para levar para casa.

- Leve isto e vá com cuidado. E venha me visitar no sábado que vem – disse com carinho e acompanhou-a com o olhar.

Na realidade, essa senhora tinha fortes laços com o Brasil. Oito anos antes, o seu único filho havia conhecido uma nikkei brasileira que tinha ido ao Japão trabalhar. Eles se casaram, tiveram uma filha e, passados quatro anos, a nora levou a criança para apresentá-la aos pais no Brasil, pois era a primeira neta deles. Infelizmente, pouco antes de embarcar novamente para o Japão, as duas sofreram um acidente de carro e vieram a falecer. O filho da senhora, que não tinha viajado por motivo de trabalho, entrou em desespero, adoeceu e estava em tratamento.

Mitchan ficou muito feliz em conhecer mais uma vovó e todos os dias, passava na casa da Obaatchan onde tomava um lanche e depois tinha aulas de reforço de japonês. Estava progredindo a cada dia, havia feito muitas amizades na escola e voltou a ser a menina alegre de antes.

Nos fins de semana, a mãe de Mitchan também tinha aulas de japonês na casa da Obaatchan. Estava progredindo tanto que tinha sido promovida no trabalho e cada vez mais animada.

Em retribuição, Mitchan contava para Obaatchan histórias do Saci-pererê, do Curupira e sua mãe preparava pratos brasileiros dos mais diversos para a Obaatchan experimentar.

Assim, a amizade com a “Obaatchan do Japão” foi ficando cada vez mais forte.

Notas:

1. O mesmo que “Vó”

2. Refeição acondicionada em caixa

 

© 2014 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção trabalhadores estrangeiros Nikkeis no Japão
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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