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História nº 20: “Vamos nos ver na Copa do Mundo!”

Quando soube que a Copa do Mundo seria realizada no Brasil, Kento deu pulos de alegria. O garoto, que gostava demais de futebol, mal voltava da escola, tinha o costume de ir para o campinho bater uma bola, da lição de casa ele nem se lembrava. Sua mãe tinha que aceitar essa situação, pois o pai de Kento também gostava de futebol e até houve época em que tinha pensado ser jogador de futebol.

- Bem que o papai podia voltar do Japão. Aí a gente podia assistir junto na televisão e até ir ao estádio, não?  - sonhava Kento com fervor.

Sua mãe ficou com pena, mas tinha que fazê-lo voltar à realidade:

- Você sabe que não tem como. O papai vai ficar mais dois anos trabalhando bastante e quando a Neetchan estiver para se formar na faculdade, ele vai voltar. Lembra que ele tinha falado assim?

O pai, que havia herdado a lavanderia do avô, deixou o serviço nas mãos da esposa e do filho mais velho e foi trabalhar no Japão. Na época, Kento, o caçula, estava com quatro anos e ainda havia a filha que estava terminando o ensino fundamental. Passados três anos, ele retornou, mas viu que o dinheiro que havia juntado não era suficiente para os gastos com a ampliação da lavanderia e construção de uma casa nova. Além disso, a mãe dele estava precisando de cuidados especiais devido à idade. Desse modo, o pai foi novamente trabalhar no Japão.

Com a família ele sempre manteve contato e com o caçula conversava pelo Skype com frequência. Graças a isso, Kento aprendeu um pouco de japonês e o pai pôde ficar em dia com as notícias sobre os times de futebol do Brasil.

Ocorre que, desde o início deste ano, os telefonemas e e-mails do pai começaram a se espaçar cada vez mais. Sua velha mãe reparou nisso e começou a se preocupar, mas a esposa e os filhos diziam: “Está tudo bem com ele. Com certeza está trabalhando cada vez mais”.

Kento deu asas à imaginação e começou a pensar deste modo: “O papai está se preparando para voltar ao Brasil. Vamos viver todos juntos de novo. Como eu queria jogar bola com o papai!”.

A cidade já estava em clima de Copa do Mundo, com ruas e lojas decoradas com as cores da bandeira do Brasil.

E no dia 31 de maio o pai telefonou: “Sou eu. Volto mês que vem. Vai dar pra ver a Copa. Até”. Quem atendeu foi sua esposa - ela levou um grande susto - e, apesar de já ser tarde da noite, acordou todo mundo para contar a novidade.

Todos ficaram muito alegres. Kento gritou bem alto: “Que legal! Meu sonho vai se realizar!”.

Apesar de inesperada, tinha sido uma ótima notícia, mas a esposa teve um mau pressentimento, pois o marido nem pareceu o mesmo, falou pouquíssimo e com voz fraca. Ela ficou bastante apreensiva, mas não demonstrou nada à família. Tinha que receber o marido com o maior dos sorrisos, como se não pressentisse nada de mau.

Como o desembarque estava previsto para as seis da manhã, ao aeroporto foram apenas a esposa e o filho mais velho. A filha tinha provas na faculdade e Kento precisava ficar em casa fazendo companhia para a avó.

O pai tinha emagrecido bastante e apareceu em cadeira de rodas. A esposa e o filho ficaram assustados, mas a funcionária da companhia aérea que veio acompanhando-o tranquilizou a família: “É que o passageiro mostrou estar um pouco fatigado pela viagem”.

A família recepcionou-o efusivamente. E quando ele se sentou na sua poltrona predileta, finalmente pareceu estar confortável. Em fins de março tinha sido diagnosticado com câncer no estômago, logo foi internado e passou por cirurgia. Tinha sido uma operação de grandes proporções e a recuperação levaria um longo tempo, então, ele quis estar junto da sua família.

Com a aproximação dos jogos da Copa do Mundo, a frente da lavanderia foi enfeitada com bandeirinhas verdes e amarelas. Kento ganhou muitos presentes, como uma camiseta amarela com o nome “BRASIL” escrito em verde, um boné azul, uma vuvuzela amarela com detalhes pretos e outras coisas. Ele levou tudo para a escola e mostrou com orgulho para os colegas.

E quando a seleção do Brasil marcou o primeiro gol, Kento começou a dar pulos de alegria e, de repente, abraçou fortemente seu pai.

Nesse momento, o coração do pai encheu-se da mais pura alegria. Sentir os bracinhos do filho envolvendo-o foi mais eficaz que qualquer medicamento e deu- lhe um novo ânimo.

- Quando será a próxima partida do Brasil? Me aguardem que vou fazer aqueles “botamotchi”¹ que só eu sei fazer!

Kento, que gostava muito de “botamotchi”, de tanta alegria deu um abração na mãe. Seu pequeno coração estava inundado de felicidade.

Nota:

1. bolinho de arroz glutinoso coberto por pasta de feijão doce

 

© 2014 Laura Honda-Hasegawa

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Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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