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História nº 18: “Olá, eu estou de volta!”

Quando Wander estava com oito anos de idade, a sua mãe se casou de novo. Ele era nikkei e trabalhava no mesmo banco que ela. A partir de então, a vida de Wander mudou bastante: passou a estudar em escola particular e ter aulas de judô e computação. Sua família aumentou e ficou mais animada. O padrasto tinha um filho de quinze anos e uma filha de dez.

Passaram-se três anos e o padrasto veio falando: “Vou para o Japão trabalhar”. Assim, de repente, parecia mesmo decidido e as crianças ficaram espantadas!

“Vou deixar o banco e abrir meu próprio negócio. Para isso preciso de muita grana, né?” – disse ele e sua esposa complementou: “Vamos comprar uma casa maior e queremos que vocês estudem em boas faculdades”. Ambos pareciam firmes na decisão que haviam tomado.

Ouvindo isto, o filho mais velho disse que preferia um carro ou uma moto e a filha, um monte de roupas da moda, muitos acessórios e a coleção completa do anime “Sailor Moon”.

Só o Wander estava se sentindo “um peixe fora d’água”, pois não estava entendendo nada, mas não ficou tão apreensivo, pois se ia junto com a família, estaria tudo bem. Até então, o Japão, além de ser distante, era um país sem nenhuma relação com ele, mas graças ao padrasto ele tinha experimentado o yakisoba e o tempura, que acabou gostando muito.

O padrasto e seu filho partiram no final de 2004 e sua mãe embarcou com o filho Wander e a enteada Tamie em fevereiro do ano seguinte.

Wander e Tamie passaram a frequentar a escola brasileira que ficava na cidade vizinha. Logo no primeiro dia, Wander se deu conta que estava mesmo num país estranho. Pelo caminho havia ainda restos da última neve. Chegando na escola, nem escola ela parecia. Algum tempo depois, falou disso à professora e ficou sabendo que aquela construção antes abrigava uma fábrica. Na sua classe, havia apenas onze alunos e de diferentes séries. No Brasil, cada turma tinha uma média de trinta alunos. Muito diferente. Quando chegou a hora do recreio, todos se reuniram no salão. Nessa escola não havia pátio nem quadra esportiva.

“Vem cá, você é de onde?”, “Como que é o Brasil?”, “É verdade que é um lugar perigoso?”, “Você joga futebol?”, “Você não é japa, né?”, “Gaijin dá medo na gente?”. Todos vieram fazendo perguntas. Mesmo sendo brasileiros, eles moravam no Japão desde pequeno, então nem tinham como saber coisas do Brasil.

Wander se assustou com tantas perguntas e começou falando de si mesmo:

- Eu sou de São Paulo. Claro que sou bom de bola. Torço para o São Paulo e sou brasileiro, minha mãe é que casou com japa.

- Ah, tá...

Em seguida, falou do Brasil:

- Se é perigoso? Outro dia, roubaram o tênis de um amigo meu!

- O quê???

Nisto, a professora apareceu no salão e todos foram para a classe, bem obedientes.

As aulas eram todas em português, os livros didáticos eram importados do Brasil, mas uma coisa era interessante: tanto os professores brasileiros como os alunos misturavam algumas palavras japonesas na conversação. Falavam “katazukê” para dizer que teriam de arrumar o material individual e os materiais de uso comum, varrer a sala e deixar tudo em ordem após as aulas. Outra palavra era “tichu”, abreviação do inglês tissue paper, que são aqueles lenços de papel que servem para tudo. “Daijoubu” significava “Tudo bem”, “Pode deixar comigo”, “Beleza!” e “Kankenai” servia para demonstrar desinteresse, indiferença, “nada a ver”. Estas foram as primeiras palavras japonesas que Wander aprendeu.

A partir daí, ele se interessou tanto que passou a assistir aos programas de TV e anime, só para ouvir japonês. Quando saía com os pais, ficava prestando atenção no que as pessoas falavam e foi ficando cada vez mais interessado. O diretor da escola notou isso e lhe indicou um professor de japonês.

O tempo foi passando e, no final de 2008, Wander concluiu o ensino fundamental e em seguida retornou ao Brasil. No mês de setembro do mesmo ano, houve a crise financeira nos Estados Unidos que repercutiu em toda a economia mundial, chegando ao Japão também. Como consequência, a escola brasileira onde Wander estudava teve que fechar as portas.

De volta ao Brasil, ele entrou no ensino médio e, em 2012, ingressou na faculdade com brilhantismo. Até se formar em 2016, pretende continuar estudando japonês e se preparando para seguir a carreira de arquiteto no futuro. Até o dia em que irá rever seu padrasto, que ficou trabalhando no Japão, e lhe dizer com o maior dos sorrisos: “Olá, eu estou de volta!”. 

 

© 2014 Laura Honda-Hasegawa

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Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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