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O ofurô e o missoshiru

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Quando era criança e morava no interior costumava ser chamado por brasileiros de “Ei! Japonês”. Toda vez que era chamado assim, eu me sentia subestimado e um ser estranho deles.

Sinto que essa expressão, tinha um sentido de certo menosprezo pelo Nikkei. Talvez tivesse origem naquela época de término da guerra, em que os japoneses formavam grupos e adotavam costumes estranhos para os brasileiros. Aqui uso o termo “brasileiro” para me referir a toda população não Nikkei. Pode ter origem também, no acentuado sotaque típico incapaz de distinguir o “ele” do “erre”. Por outro lado uma família típica Nikkei pertencia à classe média B ou C, seus filhos iam bem nos estudos, mas, estavam distantes da classe média alta. Aí havia uma barreira invisível quase instransponível. Para nós Nikkeis daquela época, - de cinqüenta anos atrás em média, - o consolo era sermos rotulados de “japonês garantido”, um atestado positivo de ser confiável.

“O que era o Nikkei daqueles tempos?” e “o que é o Nikkei de hoje?” Como é que o Nikkei  é visto por um não Nikkei? Se nós não fossemos Nikkeis teríamos, um dia,  sentido menosprezados?

Mas, ao longo desse tempo, os Nikkeis passaram a ser vistos de forma diferente.

O Brasil por ser um país eminentemente multirracial, a distinção racial costuma ser destacada, pelo menos veladamente. Uma pessoa costuma ser vista não só pela sua raça, mas, também pelo povo e pela imagem da nação que representa. No caso do Nikkei é inegável que a maneira como ele é visto é afetado pelo povo que o representa.

Penso que a melhoria da imagem do Japão produziu essa mudança de como somos vistos. A grande prosperidade alcançada pelo Japão após a derrota na guerra, alcançando a segunda posição na economia mundial foi responsável pela melhoria na avaliação do Nikkei no Brasil.

Acho que o requisito básico para a alta prosperidade do Japão se deve à sua incontestável habilidade de planejar e produzir coisas. Mas a mesma coisa pode ser dita para o caso da Alemanha (na mecânica, na ótica), na Inglaterra (tecnologia naval), na Itália (tecnologia de transformação), na Suíça (na relojoaria).

Então de onde vem a imagem própria, definitiva que caracteriza o japonês. Talvez tenha origem milenar cultivada no espírito do Bushido, o caminho do guerreiro. Mas pensando bem, os princípios do Bushido não eram bem conhecidos por aqueles que nos chamavam de “Ei! Japonês”. O Bushido não passava de algo que servia fazer o estereótipo para os comerciais engraçados, distorcendo a imagem do povo japonês.

O sucesso mundial do filme “O Último Samurai” de 2003, fez mudar essa tendência. Esse filme mostrou o sentimento do samurai japonês focando o seu lado positivo. Esse filme conseguiu descrever a diversidade de hábitos não como pilhéria, mas como “beleza e finura”. Fez ver beleza na diversidade de cultura tornando-o virtude das mais nobres reconhecê-la. Nesse sentido deve-se muito ao filme “O Último samurai” para a melhoria da imagem do Nikkei.

E já há muito tempo que os games, animes e a música japonesa tem atraído jovens no mundo inteiro. Agora o termo “Japonês” passou a ter um sentido bem diferente. Somos vistos e reconhecidos positivamente.

Recordo o que dizia meu falecido tio sobre a popularização dos costumes japoneses entre os brasileiros; “Ah! Mas eles nunca conseguirão apreciar o gosto pelo ofurô e pelo missoshiru”. Não faz muito tempo atrás, ouvi num restaurante japonês, onde só eu era oriental, um cliente levantar o braço exclamando “Guen-san! Oaisô!”. Virei-me e notei, estava tomando “missoshiru!”. O ofurô já virou moda em “spas”. Pobre do meu tio, lá no céu deve estar-se sentindo traído por completo.

Eu em 1954, com 10 anos na conclusão do primário. (4º da primeira fila a partir da direita)

* * *

Este ensaio foi escrito há dez anos e expressava a minha percepção da época. No decorrer desse tempo ocorreram fatos que sacudiram o nosso cotidiano. Foi a seqüência de imagens vistas ao vivo do terremoto de intensidade 9,0 na escala Richter, ocorrida em 11/03/2011, na região de Tohoku no Japão. O mundo nunca viu ao vivo um tsunami da magnitude que precedeu ao terremoto e nem ao acidente nuclear da Usina de Fukushima. O mundo ficou pasmo de espanto, surpreendido ao questionar para si mesmo, como poderia acontecer aquilo justo num país que sofreu o primeiro e único bombardeio atômico em Hiroshima e Nagasaki. Seria o “de novo!”, justo no Japão! Mas o mundo foi surpreendido novamente, diante da disciplina e serenidade do povo, contrastante com o que ocorre de tumulto e saques freqüentes nesses casos. E o Japão está repetindo com coragem e determinação a recuperação, através do “kizuna” (laço forte), termo quase incorporado ao nosso dicionário.

E o mundo ainda viu outro exemplo no esporte. A equipe japonesa de futebol masculino, superando a desvantagem natural física, foi vista disputando de igual a igual com outras seleções, praticando o melhor do “fair play”. Fiquei sensibilizado com atletas do futebol feminino sagrarem-se campeãs do mundo e estenderem a faixa de agradecimento à platéia pelo apoio, no começo e no fim  da partida. Era o sentimento de “Reigi”, típico do sentimento japonês, pelo apoio recebido extensivo ao acidente do Terremoto-Tsunami.

E nós Nikkeis do Brasil estamos tendo o privilégio de sentir na pele esse sentimento de reconhecimento. O “Reigi” e a disciplina em busca do belo e da perfeição como “kodawari” são típicos do espírito japonês e estão sendo cada vez mais apreciados no mundo. (25 de julho de 2013)

 

© 2013 Hidemitsu Miyamura

Brasil cultura identidade
Sobre esta série

Publicou em 2005 um livro de crônicas em japonês, com o título de Kagirinaku Tookatta Deai (限りなく遠かった出会い), coletâneas de matérias publicadas na coluna “Dokusha no room”,  no jornal São Paulo Shimbun. No livro constam episódios extraídos de um diário do seu pai com a jornada da sua vida. Falecido em 1995 com 81 anos, seu pai veio ao Brasil como imigrante em 1934 com 19 anos. Nesta série serão apresentados alguns episódios extraídos do livro.

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About the Author

Hidemitsu Miyamura, nascido em 01/01/1944 em Paraguaçu Paulista. Estudou japonês na infância em Apucarana no norte do Estado do Paraná. É engenheiro mecânico formado na Universidade Federal do Paraná. Trabalhou na empresa NEC do Brasil por 34 anos, retirando-se em 2001. Casado com a médica Alice, é pai de Douglas Hidehiro e Érica Hiromi. É autor do livro Kagiri Naku Tookatta Deai (限りなく遠かった出会い) publicado em 2005. Escreve crônicas no São Paulo Shimbun.

Atualizado em janeiro de 2013

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