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O Espaço do Meio

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A minha melhor amiga, Brenda, mencionou recentemente que nós e nossos pais somos uma geração em extinção. Nós somos filhas de soldados americanos e mães japonesas. Estes soldados se apaixonaram pelo Japão e por nossas mães durante seu serviço militar após a Segunda Guerra Mundial, e trouxeram suas noivas consigo ao retornar para os E.U.A. Os meus pais já faleceram, como também o pai de Brenda. Sua mãe está com 80 anos.

O pai de Linda, Ed, e sua mãe, Joyce (Hisae) desfrutando um piquenique com a família de sua mãe em Hakone, no Japão, por volta de 1953.

Brenda e eu somos filhas únicas e somos mais irmãs do que amigas. Dizemos que somos metade japonesas e metade sulistas, já que nossos pais eram típicos sulistas, nascidos e criados nas áreas rurais do Tennessee e Mississippi. Ser japonesa traz a sua própria identidade cultural e o mesmo acontece sendo sulista, através do linguajar, comida e música, entre outras coisas mais. Não é um estereótipo notar que dizemos muito “y’all” [Nota: “vocês,” ou literalmente “vocês todos”; ao invés de simplesmente “you” usado no plural] e às vezes falamos com sotaque. Como nossos pais, adoramos chá doce, churrasco e tudo o que é frito; e temos ainda Elvis, B.B. King, música country e rock sulista dos anos 70 nos nossos iPods. O primeiro concerto que Brenda e eu assistimos foi um concerto do Elvis em Memphis, com as nossas mães.

Ao mesmo tempo, temos leques e bonecas japonesas nas nossas casas. Como nossas mães, adoramos passar no mercado de comida multiétnica da nossa vizinhança para comprar udon e assistir TV comendo osembei. Nossos iPods também incluem música japonesa que havíamos escutado na infância, desde o okoto tradicional até o favorito da minha mãe, “Misora Hibari”. E nós duas temos pelo menos um quimono guardado nos nossos armários.

Depois de viajarmos mundo afora com nossas famílias durante o serviço militar dos nossos pais, eles decidiram se aposentar perto de uma base militar no Tennessee, de forma que foi lá que eu e Brenda crescemos juntas. De certa maneira, tivemos sorte de conhecer algumas outras famílias em situações parecidas com a nossa. No entanto, foi somente quando nos tornamos adultas que realmente pudemos reconhecer o quão fortes e destemidas foram as nossas mães e suas amigas japonesas que tiveram que deixar o seu país natal e criar raízes em um lugar novo e completamente diferente. Elas aprenderam a falar, ler e escrever em inglês, e se adaptaram completamente ao estilo de vida americano e sulista, sua cultura e tradições. Todas viraram cidadãs americanas, e algumas, como as nossas mães, até mesmo trocaram seus nomes por nomes americanos.

A minha mãe adorava comemorar a Páscoa e o Natal com todas as decorações e acompanhamentos, apesar de que ela seguia a religião xintoísta e não era cristã. Halloween chegava repleto de doces (para mim e para o meu pai) e belíssimas fantasias feitas a mão. Os aniversários eram sempre incríveis, com bolos caseiros minuciosamente decorados e as melhores festas, até mesmo uma festa de debutante. Nossas comemorações de 4 de julho incluíam churrasco de costela e galinha grelhada pelo meu pai, além de sushi e rolinhos de primavera preparados pela minha mãe, como também picles de pepino à moda japonesa (os pepinos haviam sido plantados pelo meu pai no quintal). E as festividades de Ano Novo incluíam tanto uma tijela de feijão fradinho quanto uma tijela de talharim soba frio para atrair sorte em dobro.

A minha mãe era uma excelente dona de casa e o nosso lar era impecável. Nós sempre deixávamos nossos sapatos na porta de entrada, o que eu ainda faço até hoje. Ela sabia costurar, fazer bordados, tricotar, fazer crochê e acabou se tornando uma excelente cozinheira sulista, preparando desde frango frito até tortas de noz-pecã. Ela também era conhecida pelos seus pratos japoneses, especialmente seu sushi e rolinhos de primavera. O frango teriyaki da mãe de Brenda é o melhor que existe, e quando Brenda fica doente, a comida que a faz sentir melhor é a sopa miso da sua mãe.

Mas apesar de nossas mães e suas amigas japonesas terem adotado este país, muitos sulistas não as adotaram de volta. Eu me lembro de ocasiões quando estava crescendo nos anos 60 e 70 quando nossas mães e suas amigas foram ridicularizadas devido ao seu inglês imperfeito, ou por falarem japonês entre si. A minha mãe vivia comentando como ela se sentia pouco à vontade quando estranhos a fitavam enquanto fazia compras no shopping center no centro da cidade.

Linda e sua melhor amiga, Brenda, em 1976, crescendo no Tennessee como metade japonesa, metade sulista.

Por termos crescido no Sul, Brenda e eu também não estávamos imunes; às vezes éramos chamadas de “jap”, “chink” [termo pejorativo para chineses] e “gook” [termo pejorativo para coreanos] na escola. Nos esforçamos para nos entrosar como crianças hapa [de etnia mista]. Muitas vezes, tentamos ser mais sulistas do que japonesas em um esforço para habitar confortavelmente o espaço que ocupávamos no meio de duas culturas. Nossos pais nos ensinaram a pescar e a usar armas, mas nossas mães nos ensinaram como preparar com cuidado gohan e gyoza. De ambos os nossos pais, aprendemos os valores universais da sua geração: trabalho duro, perservança e sempre dar o melhor de si, para que pudéssemos alcançar tudo o que eles desejavam para nós.

Levou um bom tempo para que Brenda e eu conseguíssemos aceitar completamente nossa dualidade. O tempo que passamos visitando nossas famílias no Japão com nossas mães em várias ocasiões, assim como o tempo que passamos visitando e morando em outras partes do país com maior diversidade étnica, tais como o Havaí e Washington, nos ajudaram a ver nós mesmas e as nossas vidas através de perspectivas diferentes. Ou talvez foi simplesmente o decorrer dos anos após o final da Segunda Guerra Mundial que nos ajudou a cruzar o espaço do meio com dignidade, e com um amor e sincera admiração pelas duas culturas. Para nós duas, como adultas, existe sem nenhuma dúvida um orgulho de pertencer ao “espaço do meio”.

 

© 2013 Linda Cooper

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Sobre esta série

Ser nikkei é intrinsecamente uma identidade com base em tradições e culturas mistas. Em muitas comunidades e famílias nikkeis em todo o mundo, não é raro usar tanto pauzinhos quanto garfos; misturar palavras japonesas com espanhol; ou comemorar a contagem regressiva do Reveillon ao modo ocidental, com champanhe, e o Oshogatsu da forma tradicional japonesa, com oozoni.

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About the Author

Linda Cooper é consultora de comunicação e escritora freelancer com mais de 30 anos de experiência no ramo de relações públicas, e como assessora de imprensa no senado dos E.U.A. e jornalista. Ela se formou em jornalismo e ciência política na Universidade de Mississippi para Mulheres. Cooper mora no estado de Tennessee. Sua melhor amiga, Brenda, é uma enfermeira licenciada num centro de pesquisa médica e mora nas redondezas com a sua família.

Atualizado em setembro de 2017

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