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Giulia, finalmente descobriu o Japão!

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Meus avós maternos imigraram para o Brasil 100 anos atrás. Primeiro foram para uma fazenda de café no estado de São Paulo, onde tiveram que enfrentar toda sorte de dificuldades durante muitos anos para, finalmente, poderem ter seu próprio sítio. Todos os 10 filhos nasceram no Brasil, mas não eram fluentes em português, então em casa preferiam conversar em japonês. Todos os filhos se casaram com japoneses ou descendentes e viveram no Paraná a vida inteira. Apenas a minha mãe, depois que se casou, foi morar na capital de São Paulo.

Meus avós paternos também vieram para o Brasil 100 anos atrás. Eram o casal e três crianças, mas durante a viagem de navio nasceu a minha tia e, no Brasil, nasceu o meu tio caçula. A família foi para uma fazenda de café no estado de São Paulo e, certo domingo, o meu avô, junto com a esposa e seus quatro filhos saíram de casa logo pela manhã. No caminho, os colonos logo cumprimentaram: “Bom dia, estão indo para a missa?” e meu avô respondeu resoluto: “Sim, vamos todos para a igreja”. E continuaram caminhando, como se realmente estivessem indo para a igreja. Na verdade, a família toda estava fugindo dali! Sempre ouvi falar de imigrantes que não suportaram a dura jornada de trabalho e fugiram na calada da noite, mas como fizeram os meus avós, em plena luz do dia, deve ter sido um caso raro.  

O fato é que meu avô paterno era um japonês um tanto diferente. Seu nome era Jiro, mas logo mudou para Nilo e seu maior prazer era conversar com os brasileiros. Depois que abandonaram a fazenda de café, eles moraram em várias cidades do estado de São Paulo, onde não existiam japoneses e, algum tempo depois, mudaram-se para o Paraná e lá meu avô comprou uma mercearia. Seus cinco filhos não receberam nenhuma educação japonesa e eram todos fluentes em português. Até a pronúncia do sobrenome Hasegawa, um dia acabou se tornando “Azegava”. Meu pai, como tinha muito interesse pela História do Japão, aprendeu japonês por conta própria. Dos cinco filhos, dois se casaram com não nikkeis. Era a década de 1950, quando os casamentos interétnicos ainda eram raros. O meu tio, irmão mais novo de meu pai, namorava uma jovem filha de italianos, mas quando foi pedir a mão dela em casamento, o pai italiano foi contra e eles tiveram de fugir para se casar.

Giulia é a filha mais velha deste tio. Quando criança, nós costumávamos trocar cartas. Com as primas do lado materno também eu mantinha correspondência, mas os assuntos das cartas das minhas primas do lado materno e as de Giulia eram completamente diferentes. Por exemplo, a minha prima Mitchan contava que havia dançado o bon odori no clube japonês, que tinha ajudado a amassar mochi no pilão na casa da Batchan, que estava colecionando pôsteres do famoso ator de cinema da época Yujiro Ishihara, etc.

Giulia, por sua vez, tinha as preferências de toda menina brasileira e ainda por cima era uma espécie de relações públicas da pequena cidade onde morava. Havia um motivo para fazer propaganda de sua cidade. Desde pequenina, Giulia participava assiduamente nos eventos da cidade. Seja nas comemorações da igreja e da escola, seja no desfile no aniversário da cidade, Giulia era uma presença aguardada. Com longos cabelos castanhos claros e expressivos olhos esverdeados, a menina Giulia, vestida com trajes típicos da Itália, realmente chamava a atenção de todos.

E, mesmo tornando-se adulta, Giulia não mostrava familiaridade com as coisas do Japão, casou-se com um não nikkei e teve três filhos. 

Autor Laura Hasegawa

Em 2004, fui visitar meu tio, o pai de Giulia, depois de muitos anos. Giulia, que morava numa cidade distante, fez questão de ir ao meu encontro. À noite, meu tio nos levou a um restaurante que servia tanto comida ocidental como oriental. E, para o meu espanto, Giulia não pensou duas vezes e escolheu yakisoba, dizendo com entusiasmo: “A comida do Japão é o máximo! Vem cá, me ensina que eu quero aprender como se faz o yakisoba!”.

Os três filhos de Giulia tornaram-se independentes e creio que ela estava aberta para conhecer e aprender coisas novas. De repente, ela pôs a mão no meu ombro, como se tivesse lembrado de algo muito importante e me perguntou: “Você viu O ÚLTIMO SAMURAI?”.

Sim, respondi que havia assistido a esse filme exatamente um ano antes.

E Giulia, mostrando um interesse fora do comum, perguntou:

- Qual é o nome daquele ator?

- É Tom Cruise, não é?

- Não, não é esse! Estou falando daquele bonitão japonês!

- Ah, ele é o Ken Watanabe!

- Pois eu quero ver todos os filmes desse Ken Watanabe. Não entendo nada de japonês, mas não tem a menor importância. Existe de verdade um japonês tão charmoso e atraente como ele?

Giulia, já na casa dos cinquenta, parecia que tinha feito uma grande descoberta e estava toda feliz! E eu achei-a muito fofa!

© 2013 Laura Honda-Hasegawa

Sobre esta série

Ser nikkei é intrinsecamente uma identidade com base em tradições e culturas mistas. Em muitas comunidades e famílias nikkeis em todo o mundo, não é raro usar tanto pauzinhos quanto garfos; misturar palavras japonesas com espanhol; ou comemorar a contagem regressiva do Reveillon ao modo ocidental, com champanhe, e o Oshogatsu da forma tradicional japonesa, com oozoni.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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